Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | Viridiana

Crítica | Viridiana

por Luiz Santiago
2,1K views

SPOILERS!

Desde a sua estreia no cinema em 1928, com o icônico Um Cão Andaluz, Luis Buñuel provocou a ira da igreja e da ala mais conservadora da sociedade com seus cáusticos “temas condenáveis”. Em 1930, em seu segundo filme, A Idade do Ouro, o diretor espanhol quebrou a linha da alusão puramente simbólico-surrealista quando realizou uma de suas sequências finais mais alarmantes no quesito “heresia”, cena protagonizada por um grupo de burgueses — um deles como Cristo — que saem de um castelo onde estiveram “na mais brutal das orgias” durante 120 dias. Condenado pelas autoridades de muitos países, pela igreja e por associações francesas como a Liga dos Patriotas e a Liga Anti-Semita, que bombardearam o cinema no Quartier Latin onde era exibido, A Idade do Ouro tornou-se o manifesto de Buñuel contra as instituições sociais, que seriam alvo constante de suas críticas ao longo de sua filmografia.

O diretor voltou ao “tema eclesiástico” em 1958, com o filme Nazarin, obra que reveste a igreja de um ingrato “espírito de Judas” e questiona a caridade cristã. É em Nazarin que o cineasta planta a semente da desvirtude, tema central de três de suas obras futuras. Por narrarem histórias de comportamentos que se alteram drasticamente e que circulam o afastamento do homem daquilo que enfaticamente acredita ou deseja exibir, chamamos os três últimos filmes de Buñuel no México de Trilogia da DesvirtudeViridiana (1961), O Anjo Exterminador (1962), e Simão do Deserto (1965) são filmes que despem os personagens de suas posturas crentes e trazem à tona os seus anseios e medos. Buñuel os expõe a diversas influências e adversidades e observa com um sorriso cinicamente indulgente os seus destinos finais, afirmando com gosto a sua mensagem: assim é o ser humano.

Co-produzido por México e Espanha e vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, o irônico Viridiana, é a abertura da trina desvirtude de Buñuel e o filme onde se encontra a sua primeira apóstata da fé. A película conta a história de Viridiana (Silvia Pinal), noviça que é convidada por seu solitário tio para passar alguns dias em sua casa. Durante todo o tempo, o tio tenta seduzi-la de várias maneiras. Certa manhã, ao ouvir a declaração (mentirosa) do velho parente de que ele a havia possuído enquanto ela estava inconsciente, Viridiana retorna imediatamente para o convento, mas é avisada, no caminho, que o tio acabara de morrer. Consternada e estranhamente confusa, a jovem noviça volta para a casa do tio, onde passa a morar juntamento com o primo Jorge (Francisco Rabal, o padre Nazário de Nazarin) e com um grupo de mendigos que resolve abrigar na propriedade, uma espécie de caridade-compensação por seu afastamento do convento. Lentamente, os acontecimentos empurrarão Viridiana para “o outro lado da margem” e sua fé esmorece.

A abertura do filme é o Aleluia, do Messias de Handel. Enquanto os créditos iniciais são apresentados sob um fotograma do convento onde se encontra a protagonista, a música cria um clima pio e prega o que não acontecerá. Com suas habituais panorâmicas geográficas que dão uma noção precisa do cenário até chegar ao objeto cênico desejado, Buñuel acompanha Viridiana e a madre superiora que conversarem sobre a ida à casa de D. Jaime (Fernando Rey). Num primeiro momento, estamos diante de uma jovem devota que vê em suas penitências e privações um modo de se apartar do mal.

Em Viridiana, os desejos são sublimados em atitudes “castas”: o tio toca o Réquiem de Mozart enquanto anseia pela sobrinha; a empregada se dedica com afinco ao seu trabalho e age com grande indiferença a tudo ao seu redor enquanto anseia pelo patrão; e Viridiana deposita em sua fé todos os seus desejos.

Após a partida da sobrinha, D. Jaime se enforca em uma corda de punhos em formato peniano, a mesma corda que a filha da empregada saltava, sob os olhares prazerosos do velho, no início do filme. Castigada pela culpa, Viridiana investe na caridade e devoção aquilo que resta de sua abalada fé. Seu primo Jorge, que divide com ela a grande casa herdada, é o contraponto dessa segunda parte do filme. Não só a libido aflorada é trazida pelo herdeiro, mas também a mentalidade do burguês empreendedor, que imediatamente passa a fazer reformas na casa e arquitetar planos de expansões e construções nos arredores. Uma trindade central nada santa toma a frente da narrativa: Jorge, os mendigos e Viridiana com sua fé em crise.

Buñuel faz com que as histórias se entrelacem e caminhem juntas sem perder suas particularidades, resultado de um roteiro e direção impecáveis. A quebra desse fluxo interno, harmonioso, acontece quando os mendigos são deixados sozinhos na casa. Sem os “patrões”, os miseráveis resolvem fazer um banquete, onde reproduzem A Última Ceia de Leonardo Da Vinci, ceia na qual um dos mendigos, travestido de noiva, dança o Aleluia de Handel e onde há estupro, destruição de objetos da casa e tentativas de assassinato.

Se a profana ceia dos mendigos foi o estopim para Viridiana reconsiderar seus feitos caridosos e sua fé, o fato não é o único causador dessa revisão de valores, tendo alguns pequenos sinais se apresentado desde os primeiros dias de sua chegada à propriedade do tio. Destaquemos pelo menos um importante fator: a curiosidade gerada pelas observações de Jorge, ou o orgulho feminino de Viridiana, orgulho ferido pelo primo que a considerava incapaz de entender suas alusões “mundanas”. A traição de Viridiana em relação ao seu Deus-Igreja compõe uma das sequências finais da obra, quando ela queima os objetos religiosos e penteia-se e maquila-se para uma visita ao homem que ela secretamente desejava.

A ex-noviça começa (ou termina) a sua jornada ouvindo jazz e jogando cartas com Jorge e a empregada da casa, com quem ele mantinha um caso. A câmera abandona o “trio pecador” afastando-se lenta e dramaticamente, pondo-se à distância, como que envergonhada. O desejo alcança a sua vitória ao fim da fita e, na mesa de jazz, cartas e sexo, cada ponta do triângulo tem uma vontade oculta a realizar. Só uma frase do Werther de Goethe pode definir perfeitamente esse epílogo: “Estou só, e neste lugar, produzido expressamente para habitação de almas como a minha, a vida parece-me deliciosa”.

  • Crítica originalmente publicada em 18 de novembro de 2013. Revisada para republicação em 25/07/2020, em comemoração aos 120 anos de nascimento do diretor e da elaboração da versão definitiva de seu Especial aqui no Plano Crítico.

Viridiana – Espanha, México, 1961
Direção: Luis Buñuel
Roteiro: Luis Buñuel, Julio Alejandro (adaptação da obra de Benito Pérez Galdós)
Elenco: Silvia Pinal, Fernando Rey, Francisco Rabal, José Calvo, Margarita Lozano, José Manuel Martín, Victoria Zinny, Luis Heredia, Joaquín Roa, Lola Gaos, María Isbert, Teresa Rabal
Duração: 90 minutos

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais