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Crítica | 118 Dias

por Gabriel Tukunaga
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Em 1993, o cientista político Samuel P. Huntington já propunha a teoria do choque de civilizações, na qual em um mundo pós-Guerra Fria, as características culturais e religiosas dos povos seriam os motivos de novos conflitos. E, como sabemos, a teoria de Huntington tornou-se factual: de um lado temos o Ocidente, representado principalmente pelos Estados Unidos e a Europa; e, do outro, o Oriente Médio, especialmente aqueles países em que a religião islâmica está fortemente presente na política. Apesar das constantes guerras bélicas, o Ocidente se guarneceu de uma importante arma ideológica: a indústria cinematográfica. Constantemente bombardeados por aqueles filmes pró-Estados Unidos e que apresentam uma visão unilateral, generalizada e panfletária do Oriente Médio e da religião islâmica, confesso que esperava me surpreender positivamente com 118 Dias. Todavia, salvo alguns detalhes, o filme acaba retratando mais do mesmo.

Dirigido por um dos comediantes mais aclamados dos Estados Unidos, o apresentador do programa The Daily Show e estreante nessa posição Jon Stewart, 118 Dias conta com o mexicano conclamado Gael García Bernal para interpretar seu protagonista. Passando-se no Irã, durante as eleições de 2009, a película é dividida em duas partes: na primeira, temos o jornalista Maziar Bahari, interpretado por Gael, cobrindo as eleições presidenciais de 2009 no país do Oriente Médio entre o reformista Mir Hussein Mossadegh e o fundamentalista Mahmoud Ahmadinejad. Na segunda, no entanto, acompanhamos a prisão de Maziar — já anunciada no início do filme — as repercussões no cenário mundial e para o próprio jornalista e como foi o confinamento de 118 Dias da personagem de Gael.

A obra cinematográfica é baseada no livro Then They Came For Me, do próprio Maziar Bahari. Nascido no Irã, o jornalista da revista estadunidense Newsweek, perdeu seu pai e sua irmã em momentos diferentes da história densa desse país do Oriente Médio — ambos acusados de serem comunistas. Retornando a sua terra natal, Bahari e expressiva parte da população, principalmente os jovens e mulheres, anseiam por reformas, representadas pelo candidato Mossadegh, especialmente após um longo período de fundamentalismo e o longo governo de Ahmadinejad. Contudo, a realidade acaba sendo outra: o fundamentalista é reeleito com mais de dois terços dos votos, e não tarda para as denúncias de fraude aparecerem. Em meio a uma intensa onda de protestos, chamada de movimento verde, o jornalista encontra-se em uma encruzilhada: com a esposa grávida em Londres, ele decide ficar mais um pouco para também cobrir as manifestações. E acaba conseguindo o que queria. Entretanto, seu pequeno momento de glória torna-se seu martírio quando ele é preso pela gravação que fez de um homem sendo assassinado pelas forças iranianas e por uma entrevista a um programa de humor estadunidense (o próprio The Daily Show) em que, ironicamente, dizia ser um espião.

Após a prisão de Maziar Bahari, a película adquire um novo aspecto, que talvez seja um de seus poucos diferenciais. Stewart aposta em um clima mais intimista, em que o medo da dor perdura mais do que a tortura por si só. Gael García Bernal entrega, novamente, um desempenho espetacular, conseguindo transmitir a fragilidade de sua personagem, que entra em conflito com a imagem de seu pai que, naquela mesma prisão, foi torturado e morto. Contracenando com Gael, o homem apelidado de Rosewater — um importante paradoxo construído entre uma imagem de infância que Maziar tinha e o perfume do torturador, visto que, como o jornalista estava vendado, o olfato ficava em evidência e anunciava a chegada do interrogador — é interpretado por Kim Bodnia. O ator dinamarquês também se devota em uma performance sensacional, conseguindo transpor uma imagem distinta de torturador. Apesar da característica linha-dura, ele também se mostra frágil e perdido, como se não soubesse muito bem o motivo de estar lá. É uma clara demonstração da alienação proveniente de qualquer fundamentalismo.

A segunda parte do filme, a da prisão de Maziar, concentra as melhores tiradas de 118 Dias. Além das atuações muito boas de Gael e Kim, a ambientação consegue retratar com verossimilhança um ambiente de tortura e as crises psicológicas sofridas pelo protagonista. A escolha de tons escuros não só remetem ao espaço caliginoso, como também fazem alusão à incapacidade de enxergar do jornalista na maior parte das cenas. Entretanto, se os atores tomam contam do recado, o mesmo não pode ser dito do roteiro nessa segunda parte, que poderia ser muito mais explorado.

Afinal, se as atuações e as construções das personagens são surpreendentes e as cenas da prisão possuem um aspecto ímpar, principalmente devido ao intimismo, qual o problema de 118 Dias? Ao analisar um filme, não devemos considerá-lo somente como uma obra avulsa, perdida no tempo. Da mesma forma que os livros, a televisão, o teatro, as artes plásticas e diversas manifestações artísticas, o cinema faz parte de uma conjuntura histórica e social e é a partir desse contexto que devemos explorar uma obra cinematográfica. O fato é: a película de Stewart não inova. A ajuda da cineasta Kathryn Bigelow, que também filmou Guerra ao Terror (2008) e A Hora Mais Escura (2012) parece, na verdade, ser mais um obstáculo para uma visão distinta do que um auxílio.

Sim, o governo fundamentalista islâmico no Irã é forte, esse fundamentalismo prejudica minorias e faz do país conservador, a violência por parte das autoridades é real e precisamos criticar tais governos. O que é errado é tentar infiltrar uma visão unilateral na cabeça dos ocidentais. A indústria precisa parar de utilizar apontamentos com base nesse teatro do Bem e do Mal, como bem escreveu Eduardo Galeano. 118 Dias tenta se redimir e se destacar dos demais filmes com a mesma temática em seu discurso final, no qual é dito que Maziar só recebeu toda atenção por morar em um país estrangeiro ocidental, e que existem diversos iranianos que lutaram contra o fundamentalismo. E tudo isso é verdade, e deveria ter sido mais bem esmiuçado para a construção de um longa-metragem que se acentuasse melhor.

Apesar de toda essa mensagem no final, a sensação de vazio na conclusão de filme é inevitável, principalmente pela falta de sondagem de outros temas que ou foram aproveitados de maneira medíocre ou nem sequer foram abordados. 118 Dias aponta a dificuldade que aqueles que fazem oposição ao governo sofrem, todavia não apresenta uma solução para tal problema. Enquanto os jornalistas e ocidentais presos recebem uma enorme atenção mundial, os militantes do próprio país que buscam uma nação melhor — fazendo forte oposição ao seu próprio governo e promovendo o rompimento de barreiras conservadoras — são negligenciados pela imprensa ocidental e, assim como sua luta, acabam esquecidos. Para eles, a luta não foi de somente 118 dias; e sim de décadas de exploração, corrupção e opressão. E ainda está longe de terminar.

118 Dias (Rosewater) — EUA, 2014
Direção:
Jon Stewart
Roteiro: Jon Stewart (baseado em biografia escrita por Maziar Bahari e Aimee Molloy)
Elenco: Gael García Bernal, Kim Bodnia, Dimitri Leonidas, Goldshifteh Farahani, Haluk Bilginer, Jason Jones, Shohreh Aghdashloo
Duração: 103 min.

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