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Crítica | 47 Ronins (2013)

por Luiz Santiago
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Não é preciso muita coisa para se fazer uma análise racional de uma produção cinematográfica. Se tivermos em mente o contexto de produção do filme e a proposta da obra, certamente nos será possível aludir a várias outras exigências cobradas de quem se dispõe a falar sobre um cinema. No caso de 47 Ronins, basta sabermos que o diretor Carl Rinsch jamais havia realizado um longa-metragem em sua vida e que a película é uma produção americana filmada na Hungria e no Reino Unido, cuja proposta é contar a mais icônica história do código de honra dos samurais, o bushido.

Ora, se a proposta do filme era trazer às telas o famoso plano de vingança dos ronins do castelo Ako, o diretor e os roteiristas tinham duas opções: ou ambientavam a história no tempo e espaço em que ela realmente aconteceu (Japão, início do século XVIII) ou adaptavam a história para outro espaço e tempo — releituras assim são comuns no cinema. Todavia, o que vemos em 47 Ronins de Carl Rinsch é a criação de uma aventura onde o espaço e o tempo originais foram mantidos, o teor da lenda se faz presente (até porque a proposta do filme é contar a lenda), mas absolutamente nada da atmosfera e modelo de vida do Japão dos shoguns pode ser visto na tela em pouco mais de duas horas de projeção.

O que temos em 47 Ronins é uma espécie de pastiche disneilândico sobre uma sociedade que em realidade era movida por honra, respeito, guerra e submissão. O roteiro do filme comete o mais abominável dos erros que se pode fazer ao tratar-se de uma cultura específica: misturar elementos diversos de sua história ignorando época, sociedade, cultura e não sabendo se opta pela fantasia ou pela realidade. É como fazer um filme sobre a Guerra dos Farrapos colocando um exército de Curupiras, uma Iara maligna, alguns Sacis sapecas, um Bumba-meu-boi e cangaceiros destemidos vestidos como se estivessem prontos para um desfile exótico na São Paulo Fashion Week.

Em vez de usar o orçamento de produção para trabalhar o cenário japonês do Tokugawa bakufu, a equipe do filme, especialmente o diretor, optou por fazer um desfile de suposta beleza estética sem significado nenhum. E por quê não possui significado? Porque não é preciso ser historiador ou conhecer a fundo a história e época dos 47 ronins para notar que a maior parte das coisas que aparecem no filme não pertenciam àquela época! Vejamos o caso dos figurinos, por exemplo. Há cenas em que a filha de Oishi se veste como uma modelo experimentando algo exótico e antigo, numa espécie de Chanel versão nipônica! Tem como defender? Não tem!

Além disso, uma olhada rápida em pinturas japonesas do século XVIII nos mostraria que a estampa era algo mais característico do cenário ou da indumentária festiva (seja do teatro kabuki, das festas do chá e outras cerimônias) do que do cotidiano. No filme, há um uso desmedido de estampas e cores que quebram a serenidade típica da vestimenta japonesa e isso até mesmo para famílias tradicionais do século XX (já viram os filmes de Yasujiro Ozu?). O uso de cor em roupa, para os samurais, era feito em momentos muito especiais e, ao invés da estampa, o símbolo do clã era exibido em uma parte do quimono, geralmente no braço (vejam Ran ou Kagemusha de Akira Kurosawa). Não haviam firulas, lenços no pescoço ou quimonos que pareciam capas de super-heróis. Mas aqui tem tudo isso, e de sobra.

Nessa mesma onda de vazio barroco e anacrônico, temos cenários com um número bem maior de elementos do que deveriam ter e, novamente, muita cor. Apesar de John Mathieson realizar uma bela fotografia noturna e ter ótimas ideias de angulação e incidência de luz para ambientes fechados, ele acaba obedecendo ao parâmetro de Bem versus Mal que pontua o filme e, com isso, ajuda no desserviço estético-cultural em que a película se constitui. Dessa forma, o clã de Kira é mostrado com cores escuras, construído com arte austera, pedras grandes e cinzas, neve e mogno negro. O clã do daimyo Asano não tem muralhas, possui madeira clara, cores quentes para as roupas, muita área verde, bandeirolas de cores neutras e frias tremulando, pedras pequenas no chão e jardins.

A disparidade visual entre os dois clãs poderia muito bem ser interpretada como uma alterativa de diversificação dramática feita pela equipe criativa, não fosse a intenção de mostrar um ambiente místico e de oposição entre o bem e o mal, algo que nem de longe condiz com a história dos 47 ronins. Seja visto como lenda ou fato histórico, o acontecimento é resultado de um conjunto sociopolítico e econômico e não de bruxaria. Acredito que se esqueceram de dizer para os roteiristas e para o diretor que eles não estavam adaptando contos fantásticos de Ryunosuke Akutagawa para a grande tela. Toda a parte de magia contida no filme é um verdadeiro desrespeito e zombaria para com a história que se dispuseram a narrar.

E dentro dessa linha, o personagem blasé de Keanu Reeves é, além de inútil, parte de outro ponto abominável do filme: o teor romântico. Como disse no parágrafo anterior, os eventos em torno da história dos 47 ronins eram de ordem sociopolítica e econômica. Até a provocação de Kira a Asano (no original, porque nesse filme é outra coisa que acontece: uma aranha mágica faz xixi roxo na boca de Asano!), tinha a ganância como foco, um fator humano, é verdade, mas ligado a um elemento externo bastante notável, especialmente para nobres do shogunato.

A inimizade tinha menos a ver com sonhos de poderes totais do que com autopromoção dentro da corte – não existia um samurai que desejasse dominar o Japão, isso é falso. O respeito ao shogun era algo sagrado do bushido, mais um elemento que foi inteiramente corrompido no filme para atender a uma demanda amorosa inapropriada e dar vida a duas horas de fantasia do mais baixo nível. Não podemos esquecer que as relações humanas e especialmente as hierárquicas no Oriente não eram (e não são até hoje) como as Ocidentais, logo, apostar em um drama de “cientista louco” vivido por um samurai setecentista ligado a uma bruxa e um mestiço de humano e demônio é produto de mente insana, um convite ao Framboesa de Ouro e ao topo de lista de pior filme do ano.

E para não dizer que não há coisas boas no filme, podemos destacar algumas panorâmicas sobre a paisagem do clã Ako e alguns efeitos de transmutação da bruxa — e eu disse “alguns”, porque os realmente bons são os que ela faz com o quimono. Já as suas transformações em raposa ou naquela criatura que luta contra Kai ou mesmo o efeito-Medusa com o cabelo são horrendos. Também merece destaque o trabalho de Stuart Baird na última hora do filme. Sua edição, no início, é insegura e pouco funcional, mas se fixa bem na segunda metade, especialmente na noite da vingança dos ronins, desde o cerco ao castelo de Kira, feito durante o casamento, até a batalha final.

Destruindo ou nivelando por baixo os elementos da cultura japonesa, 47 Ronins mostra uma realidade cada vez mais triste observada no cinema de massa: para levar muita gente ao cinema, ganhar dinheiro fácil e enganar o público com falso encanto estético, tudo é válido, até mesmo pisotear a mais importante e conhecida história do código de honra dos samurais, transformando-a em uma fantasia mal escrita, confusa e abarrotada de referências descabidas, anacrônicas e inúteis, tudo envernizado com um drama de amor à la Disney e execução de magia por uma péssima premissa.

47 Ronins (47 Ronin) – EUA, 2013
Direção:
Carl Rinsch
Roteiro: Chris Morgan, Hossein Amini, Walter Hamada
Elenco: Keanu Reeves, Hiroyuki Sanada, Ko Shibasaki, Tadanobu Asano, Min Tanaka, Jin Akanishi, Masayoshi Haneda, Hiroshi Sogabe, Takato Yonemoto, Rinko Kikuchi
Duração: 127 min.

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