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Crítica | A Adolescente

por Ritter Fan
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Posso dizer com bastante tranquilidade que, tendo visto a maioria do trabalho de Luis Buñuel e escrevendo um gigantesco especial sobre sua filmografia juntamente com meu co-editor Luiz Santiago, não esperava encontrar nenhuma surpresa nos poucos filmes que ainda estavam inéditos para mim. No entanto, fico muito feliz em dizer que A Adolescente me pegou desprevenido, desguarnecido e completamente despreparado. Foi um verdadeiro solavanco cinematográfico de um de meus diretores preferidos.

A Adolescente é uma obra praticamente desconhecida de Buñuel. Em sua segunda e última coprodução entre México e EUA falada em inglês (a primeira foi As Aventuras de Robinson Crusoé), o mestre do surrealismo faz uma obra extremamente crítica ao preconceito racial usando um assunto tabu como matéria-prima: a pedofilia. Chamei sua atenção? Era esse mesmo meu objetivo, pois o filme merece ser caçado e visto por qualquer cinéfilo, já que, lançado exatamente em 1960, na época da solidificação dos movimentos pelos direitos civis nos EUA iniciados na década anterior, a fita mantêm-se extremamente atual mesmo hoje em dia, ainda que, claro, não seja completamente imune ao tempo.

A narrativa começa com um homem negro chegando à remo às margens de uma praia inóspita em uma ilha na costa do estado da Carolina do Sul, nos EUA com uma placa que claramente indica que se trata de uma propriedade privada e que aqueles que a invadirem serão acionados judicialmente. Mas Traver (Bernie Hamilton) não tem para onde ir já que ele foge de uma falsa acusação de estupro e passa a caçar pelas imediações para sobreviver.

Não demora muito e descobrimos que, na ilha, moram um zelador branco, Miller (Zachary Scott), um idoso que acabou de falecer (só vemos seus pés) e a neta dele, Evalyn ou Evvie (Key Meersman). Com o velho morto, Evvie, uma menina de 12 ou 13 anos, está completamente à mercê de Miller, homem bruto, caracterizado como tal logo na cena inicial em que caça e mata uma lebre (em uma cena naturalística de Buñuel que provavelmente envolveu mesmo a morte do animal em câmera). É a força bruta cercando a presa, exatamente como depois vemos, em outra sequência, um guaxinim invadindo o galinheiro e, em imagens gráficas dignas de um documentário da National Geographic, matando uma galinha e despedaçando-a. Já no caso da menina, sua conexão com a natureza dá-se por intermédio de um simpático veado que ela mantém preso por uma corda. É o evidente contraste entre força e pureza, vida e morte.

A chegada de Traver, porém, quebra essa dinâmica entre Miller e Evvie, retardando o inevitável. Quando Miller descobre, por intermédio da bondosa Evvie que Traver está na ilha, passa a caçá-lo impiedosamente muito mais por ele ser negro do que por ele estar invadindo propriedade privada. Graças, porém, a ações por parte de Traver, uma tensa paz é estabelecida e o negro passa a trabalhar para o branco já estabelecendo, naturalmente, a divisão social.

Luis Buñuel critica o racismo abertamente usando como meio de comparação outro crime inenarrável: a pedofilia. No entanto, essa pedofilia é, talvez, uma forma moderna de tratar uma questão que, na década de 60 em um estado sulista dos EUA, talvez não fosse tão “problemática” assim, valendo especial destaque para as aspas, por favor! Mas Buñuel não deixa dúvidas de que, se não está falando propriamente de pedofilia, certamente está condenando o abuso de menores e muito claramente reprova a ignomínia e imoralidade dos avanços de Miller em cima de Evvie e a concretização do ato, que ele nunca mostra, mas deixa muito além das entrelinhas.

E a correlação entre o passado imediato de Traver e o presente de Miller e Evvie é evidente: um negro “obviamente” estuprou uma branca, enquanto que Miller não fez mais do que a natureza determina, não é mesmo? Para pontuar com mais força ainda a situação e, de passagem, ainda colocar a Igreja Católica em uma desconcertante encruzilhada, há a introdução de mais dois personagens mais para o final do filme. O primeiro é um barqueiro chamado Jackson (Crahan Denton), amigo de Miller, que traz o Reverendo Fleetwood (Claudio Brook) para a ilha para fazer o enterro do pobre avô da menina. Jackson consegue ser ainda mais racista que Miller e fica enfurecido quando descobre que Traver está lá também e que ele é procurado por estupro. Mas o objetivo de toda a meia hora final é mesmo focar no reverendo que, ao descobrir a relação entre Miller e Evvie e ao perceber a inocência da menina, o que ele faz? Ora, o que todo bom padre pode fazer: leva a garota para um riacho próximo para batizá-la e, com isso, livrá-la de seus pecados. A culpa, claro, é do abusado e um mergulho no rio resolve tudo.

É uma cena forte em simbolismo, mas revoltante do começo ao fim, bem no estilo ironicamente crítico de Buñuel. Quando o reverendo, finalmente, enfrenta Miller, ele o faz dando uma saída para o homem, ao informar que ele deveria expiar seus pecados, o que ele prontamente faz ao passar a proteger Traver da fúria de Jackson. A Igreja quer dizer que um ato imoral pode ser acobertado por um ato falsamente bondoso. Simples assim.

A menina Key Meersman, belíssima em seu primeiro papel de uma qualidade assustadora, encanta na tela por realmente exalar pureza, bondade e inocência, sem deixar de também passar aquela sensualidade brejeira que chega a encantar Traver, ainda que ele saiba resistir a seus impulsos mais basais. É uma pena que Meersman, como atriz, só tenha feito, dois anos depois, mais um filme, desaparecendo do cenário cinematográfico em seguida para nunca mais voltar.

Bernie Hamilton como Traver é muito eficiente ao passar aquele misto de bondade e esperteza, não deixando dúvidas sobre o tipo de personalidade amável que ele tem. Se, no primeiro segundo em que ele encontra com Evvie, nós, espectadores, podemos sentir alguma tensão, algum perigo, ele logo desaparece com um trabalho de close-up de Buñuel acompanhado de feições muito claramente boas do ator. Aliás, Buñuel e Hamilton também não deixam dúvidas, mesmo antes da explicação sobre a acusação contra Traver, de que ele é inocente do crime a ele imputado.

O grande problema de A Adolescente é o quão didático é o roteiro. Usando Meersman como interlocutora, os diálogos de Buñuel sobre racismo são improváveis demais e estão lá somente para benefício da audiência que, porém, não precisa ouvir a explicação do porquê do branco não deixar o negro sentar à sua mesa. Isso é mais do que evidente e as imagens já falam por si próprias. Se Buñuel trabalhou tão bem e somente com imagens o contraste entre selvageria e inocência usando a alegoria de animais, ele não precisava fazer um discurso tão expositivo assim sobre a situação. Afinal, o poder da imagem é gigantesco, bastando para isso ver uma das cenas finais em que Buñuel foca as pernas de Evvie, de vestido e salto alto, mas saltitando pelo cais como se estivesse brincando de amarelinha. Ela é uma menina ainda e não precisamos de alguém nos afirmando isso.

Se A Adolescente não é perfeito, é um filme que no mínimo merece uma nova chance de ver a luz do dia. É uma pequena obra-prima escondida nos pântanos sulistas dos EUA que, porém, continua extremamente atual e forte.

  • Crítica originalmente publicada em 11 de novembro de 2013. Revisada para republicação em 17/07/2020, em comemoração aos 120 anos de nascimento do diretor e da elaboração da versão definitiva de seu Especial aqui no Plano Crítico.

A Adolescente (The Young One/White Trash, EUA/México, 1960)
Direção: Luis Buñuel
Roteiro: Luis Buñuel, Hugo Butler (baseado em história de Peter Matthiessen)
Elenco: Zachary Scott, Bernie Hamilton, Key Meersman, Crahan Denton, Claudio Brook
Duração: 96 min.

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