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Crítica | A Árvore da Vida

por Luiz Santiago
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Onde estavas tu, quando lancei os fundamentos da terra? Responde-me se tens sabedoria para isso. Quem lhe pôs as medidas, se tu o sabes? Ou quem estabeleceu sobre ela o seu cordel? Sobre que estão fundadas as suas bases, ou quem assentou a sua pedra de esquina, quando as estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e todos os filhos de Deus rejubilavam?

Livro de Jó 38:4 – 7

A epígrafe retirada da Bília abre A Árvore da Vida (2011), do filósofo Terrence Malick, diretor conhecido por seus longas contemplativos e, até este filme, por considerável espaço de tempo entre uma produção e outra. Malick estabeleceu um estilo profundamente metafórico e espiritual, desligado de toda a parafernália técnico-narrativa secular. Sua filmografia conseguiu a amplitude que tem graças à perfeição narrativa e a planificação lírica e poética (salientando bem a diferença entre as duas coisas) em um momento do cinema em que tais produções são cada vez mais raras aqui no Ocidente. Não é que não existam obras com esse caráter, mas convenhamos que não há muitos cineastas preocupados em trazer para seus projetos uma linha mais impalpável, panteísta, deixando de lado a montagem televisiva, o roteiro verborrágico e a direção inquietante. O cinema de Malick é um exemplar do cinema que se preocupa com a alma.

Dito isto, não é de se espantar que tivéssemos chegado a 2011 com a grande euforia pela estreia de A Árvore da Vida, incitada após o filme levar a Palma de Ouro em Cannes. Todavia, qual não foi a surpresa de parte da crítica e dos espectadores ao constatarem que A Árvore da Vida é um filme inebriante de tão belo, mas que acena para o ruim, de tão vazio! Pela primeira vez em sua carreira, Malick realiza uma obra onde a estesia e a beleza dos planos-sequência suplantam o significado geral da fita, e as mais de duas horas de projeção ficam por completo entregues ao subjetivo do espectador, não conseguem mover a barreira de se tornar independente. Como algo em si, não se realiza, apenas está lá para desfrute inebriado e embasbacado da bela imagem… pela bela imagem.

A expressão artística no cinema até pode ser um enigma completo, mas o seu todo deve possuir um fio condutor (e não estou falando de narrativa linear) a fim de nos fazer enxergar pelo menos um dos pontos indissociáveis dessa particularidade semiótica (segundo ótima contextualização de Aumont e Marie): “sentido da realidade, tradução da subjetividade do artista na obra e indução de um estado emocional no espectador”. Se juntarmos todos os elementos espirituais, metafóricos, metafísicos, filosóficos e teológicos, não chegaremos a nenhum sentido de realidade em A Árvore da Vida, posto que o filme nos apresenta uma linha atemporal de acontecimentos — abarcando o princípio da Era Cenozoica até os dias de hoje — e se destina a falar aos que tem fé. A realidade está banida, e Deus, a Natureza e a Graça assumem o leme desse barco de reflexões no mar da Criação Divina.

A subjetividade aparece não só no espelho que Malick faz de si na família que protagoniza a obra, mas do próprio filme em relação às plateias, como objeto maleável, múltiplo de significados. É certo que após a sessão de A Árvore da Vida, dezenas de versões, entendimentos e interpretações surgirão, chegando com isso à terceira coluna da expressão artística, a indução dos estados emocionais no espectador. Mesmo para quem, como eu, não amou o filme, duas coisas ficam bem claras: é um dos longas mais belos já realizados e um dos que (ou talvez o único deste século) podemos nomear de “caminho para o divino” ou “alumbramento sacro” ou “filme onde se pode sentir Deus”.

O vazio que me trouxe essa obra talvez esteja ligado à sua carga panteísta, elementar, orgânica, mas esta não é a única causa. Penso que Malick levou muito a sério o seu batismo místico e criou algo que se confunde com um documentário naturalista de alta qualidade, com imagens do espaço, do mar, de geleiras, montanhas, vulcões em erupção, planetas e do Sol. Através de seu “roteiro de máximas” — e apostando na problematização da vida em nosso planeta através dos tempos, da educação e sofrimento humanos, da moral e ética pessoais — o diretor se perde no jogo duplo entre a realidade secular (o drama da família com o pai autoritário, a mãe angelical e o filho que morre muito jovem); a realidade divina (a exemplificação de que tudo é uma conexão milenar vinda de um gerador — Deus — que pulsa de vida); e a realidade da vida como questionadora de si mesma e como possibilidade após a morte.

A cena final do filme é um exemplo desses caminhos mal pavimentados pelo diretor, que numa espécie de Paraíso, Reino dos Mortos, Mentalidade do Perdão, Lugar de Amor… reúne as personagens em júbilo, exatamente como nos diz o final do último versículo citado na epígrafe. Os filhos de Deus se alegram (certamente não em vida, de modo que penso a cena final como uma visão bem posterior a tudo o que temos durante a projeção), enquanto as estrelas da alva cantam juntas. E que estrelas são essas? Ora, todo o Universo! A criação divina é pequena diante da força que a move, que a faz morrer e (re)nascer, que a reúne num único bloco de vida e a faz ser necessária para os que virão depois: tudo tem um propósito de ser. A fluidez de Heráclito volta à tona nesse filme de Malick e a poesia impregnada a ela facilmente encanta a qualquer um que a vir. Ao som de Smétana, Bach, Mahler, Mozart, Berlioz e Mussorgsky, e tendo um criativo grupo de cinco editores, não é de se espantar que o filme corra como um rio: lentamente. Mas dos incômodos que a película causa, este é o menor.

Não há um único plano feio em A Árvore da Vida. Não há uma única palavra feia. Não há feiura aqui. O problema é o filme ser concebido como uma viagem ao âmago da Criação e ter, como conteúdo, uma composição híbrida pouco funcional e mal amarrada entre passado, presente e um futuro místico, uma nova experiência humana. O quanto essa opinião está impregnada de subjetividade eu ainda não sei medir. Mas afirmo que gostaria muito mais de A Árvore da Vida se ele fosse dividido em 10 documentários poéticos sobre a origem do Homem e do Universo, tendo como plano de fundo a história de uma família contada linearmente. A obra foi concebida para exibição no Éden e apenas Deus, seu séquito de escolhidos e os seres celestiais poderão apreciar com total entrega e devoção (obrigatórios para que se capte todo o conteúdo que desfila na tela) este puro exagero maneirista.

Pendurado em abstratismo transcendental, Malick foi ovacionado em Cannes e segue arrebatando espectadores que, com o passar dos anos, descobrem o filme. Para mim, ele continua sendo um bom diretor e mantenho afirmação de que ele é um dos raros cineastas que podem se orgulhar de nunca ter feito um plano ruim, mas que em A Árvore da Vida não fez nada demais além de dar fôlego a um irmão manco e sufocado em orações e deslumbramento pelo belo de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), este sim, uma reflexão legítima e madura sobre a existência humana, Deus e a Criação.

A Árvore da Vida (The Tree of Life, EUA, 2011)
Direção: Terrence Malick
Roteiro: Terrence Malick
Elenco: Brad Pitt, Sean Penn, Jessica Chastain, Hunter McCraken, Laramie Eppler, Tye Sheridan, Fiona Shaw, Jessica Fuselier, Nicolas Gonda, Will Wallace, Kelly Koonce
Duração: 139min.

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