Home FilmesCríticas Crítica | A Caça (2012)

Crítica | A Caça (2012)

por Luiz Santiago
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Thomas Vinterberg parece carregar a mesma sina de seu personagem principal em A Caça: o estigma por algo “feito” no passado. Mesmo quando o diretor apresenta as soluções para a trama desse seu mais novo filme, vemos que o estigma de Lucas, a personagem vítima, permanece vivo, embora tudo e todos pareçam querer esquecer o que aconteceu. E Vinterberg amarga a mesma realidade. Encabeçando com Lars von Trier o insano movimento cinematográfico chamado Dogma 95, é ainda impossível desconectar o diretor de seu passado e propostas, muito embora A Caça seja algo que guarda apenas nuances sociológicas de suas primeiras obras, em especial a dogmática Festa de Família.

A Caça é uma crônica sobre o convívio em sociedade. O filme se passa em uma pequena e pacata comunidade onde todos são amigos e se conhecem relativamente bem. Lucas, professor de uma escola infantil, é um dos moradores desse lugar. Ele acaba de conseguir a guarda do filho e parece ter uma vida tranquila, sendo amado por todos, inclusive pela crianças da escolinha, com quem tem um afável relacionamento. O chacoalhar dessa realidade acontece quando Klara, uma garotinha da escola e filha do melhor amigo de Lucas, faz uso de uma frase ouvida do irmão e acaba acusando o professor de abuso sexual.

Em tempos de praga, qualquer sinal afim parece um indício de contaminação. Falar de abuso sexual a crianças hoje é um convite a uma grande discussão, simplesmente porque o ato vil, que nunca foi novidade, transformou-se em uma febre midiática e paranoia contemporânea. Qualquer sinal de proximidade e carinho de um adulto a uma criança é passível de interpretações que ignoram que nem todo adulto é um tarado. A pedofilia criminosa, ou mesmo esse invólucro sacrossanto sobre a infância e adolescência é historicamente recente, basta lembrar de como as duas questões eram tratados no início do século XX (vejam que nem é preciso ir tão longe) para confirmar isso.

Por outro lado, é evidente que existem criminosos que se valem da boa vontade de amigos ou conhecidos e assim aproximam-se de suas crianças com a mais repudiante das intenções. E é esse caminho no fio da navalha que o roteiro de Vinterberg e Lindholm se estrutura. O filme que escrevem não mostra os eventos burocráticos ou milhares de perguntas da polícia para o acusado. Objetividade é a marca da obra. Dentro de um universo inicialmente familiar e convidativo, temos um eventos que acaba afastando um dos membros desse paraíso social cheio de rituais e regras próprias, um afastamento que traz à tona a monstruosidade guardada sob as máscaras de amizade, tapinhas nas costas e calorosos apertos de mão.

Mas não há uma acusação sumária a nenhuma personagem. Talvez o modo como o roteiro constrói a psicologia de Lucas seja diferente das demais personagens, mas isso não é algo que nos faça entender a comunidade como vilã, ou mesmo a garotinha Klara, que age como qualquer uma criança com raiva, e que, ao tentar contar a verdade sobre o que (não) aconteceu, depara-se com a vontade dos adultos em dar continuidade à mentira, alegando confusão e medo por parte da garota. Junto a isso, as regras utilizadas para a averiguação de uma criança abusada (pesadelos, xixi na cama, náuseas) podem facilmente ser confundidas com qualquer reação normal para qualquer criança, o que nesse caso piora ainda mais a situação de Lucas, posto que os pais observam tais comportamentos nos filhos e já os conectam ao abuso do professor pedófilo.

A facilidade com que a acusação é recebida por todos, o número diminuto de verificações psicológicas e médicas e a negação da palavra ao acusado são outros elementos que o diretor traz para acirrar a briga. O filme ganha aos poucos uma atmosfera de desespero, no que é acompanhado pelo escurecimento da fotografia e por uma irônica leveza de movimentação da câmera.

via crucis de Lucas e o caminho percorrido até [SPOILER!] o seu perdão e reaceitação no ciclo de amigos e membros da comunidade é árido. Mas esse acontecimento é visivelmente mais uma adequação de realidades. O que temos na penúltima sequência é a volta à normalidade ritualística (a obtenção da licença de caça pelo filho de Lucas), mas uma mirada atenta para os olhares dos participantes e o desenrolar dos breves eventos mostram que as aparências enganam. O estigma após a acusação é uma maldição eterna. A dúvida, que geralmente faz parte das relações humanas, certamente é bem maior em casos assim, e por mais que não tenha feito nada, o próprio acusado se estigmatiza, achando-se uma caça em meio à matilha social.

Vinterberg pode errar no desfecho de seu filme, com reafirmação do óbvio; ou ainda, por pequenas cenas que pisoteiam a verossimilhança, mas se olharmos para a sua obra, veremos uma eficiente crônica social, que não tem a capacidade de dissecar ou resolver (longe disso!) uma histeria de nosso tempo, mas com certeza traz à mesa as cartas para uma discussão que aborda o outro lado da moeda e uma outra situação: o falsamente acusado e o falho processo de investigação.

E ainda vale dizer que o elenco de A Caça é simplesmente fantástico, mas o destaque mesmo vai para Mads Mikkelsen, que interpreta Lucas. O ator faz um trabalho louvável, contido na maior parte do tempo, mas bastante expressivo. Ele foi premiado em Cannes pelo  trabalho realizado neste filme. Vale ainda ressaltar que também em 2012, o ator personificou com eficácia o doutor Johann Friedrich Struensee em O Amante da Rainha, uma outra personagem de peso.

A Caça (Jagten) – Dinamarca, Suécia, 2012
Direção: Thomas Vintenberg
Roteiro: Tobias Lindholm, Thomas Vinterberg
Elenco: Mads Mikkelsen, Thomas Bo Larsen, Annika Wedderkopp, Lasse Fogelstrøm, Susse Wold, Anne Louise Hassing, Lars Ranthe, Alexandra Rapaport, Sebastian Bull Sarning, Steen Ordell Guldbrand Jensen, Daniel Engstrup.
Duração: 115 min.

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