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Crítica | A Cor da Romã

por Luiz Santiago
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A trajetória de Sergei Parajanov no cinema soviético é basicamente a de um cineasta genial interrompido pela cartilha “realista” e silenciadora do regime. Ele não foi o único (Andrei Tarkóvski é outro exemplo famoso da mesma geração cinematográfica que Paradjanov, ambos tendo começado a dirigir nos anos 1950), mas esteve entre os mais prejudicados, sendo preso duas vezes, tendo sua obra boicotada e censurada, além de permanecer em um auto-ostracismo de 1968 (logo após terminar as filmagens de A Cor da Romã) até 1980, quando então voltou a dirigir.

Após o lançamento e sucesso de seu glorioso Cavalos de Fogo / Sombras dos Ancestrais Esquecidos (1965), Paradjanov passou a figurar na lista negra dos artistas soviéticos e pegou o preço, tendo diversos projetos cinematográficos negados ou adiados sob a justificativa de que eram “subversivos” ou “fugiam ao que o governo pensava sobre aquele tema”. Após inúmeras tentativas junto à Armenfilm e promessas de que iria rever o “conteúdo hermético do roteiro”, o cineasta conseguiu iniciar a produção de um de seus filmes mais famosos, a poesia áudio-visual e anti-cinematográfica chamada A Cor da Romã, uma cinebiografia do poeta georgiano Harutyun Sayatyan, mais conhecido como Sayat Nova.

Para representar a vida desse homem, Paradjanov mergulhou em um tipo de criação artística que junta música, teatro, artes plásticas e poesia, entregando um filme de câmera parada, como se fosse uma coleção de iluminuras e ícones em eventual movimento; criações embebidas em misticismo; alegoria, metáfora e, em menor grau — apesar de muitos espectadores pensarem o contrário — surrealismo. A proposta do diretor aqui é menos surrealista e mais engajada, por assim dizer. Ele não pretende manipular a realidade ao extremo, distorcendo-a; mas presente transcendê-la a ponto de negá-la, alcançando um outro patamar, o da alma do poeta, onde tudo é visto como surpresa e um novo mundo se abre a cada poderosa imagem que surge na tela.

Assistir A Cor da Romã é como viajar pelo sentimento que nos causa a leitura de versos como “Nos abandonou e se foi, mas nós, os vivos, te cobrimos em um casulo, para que em seu novo mundo você possa irromper como uma borboleta” ou “Procuramos um lugar de refúgio para nosso amor, mas em seu lugar o caminho nos conduziu a terra dos mortos“… O entendimento aqui não é necessário, porque a cada vez que assistirmos ao filme ele dialogará conosco de uma maneira diferente, como se conversasse com o nosso interior de forma a arrancar-lhe dor, riso, lágrimas, lembranças da infância e medo do futuro.

Embora diferente da proposta de Buñuel e Dalí em Um Cão Andaluz (1929), o resultado e a forma de apreciação de A Cor da Romã se parece muito com as daquele filme. A racionalização é o que menos importa nesse caso, mas a sensação, as palavras (como se fossem uma livre associação) que surgem à mente quando vemos determinada imagem é o que contam. Estamos diante de um “Auto da Vida e Morte de Sayat Nova” e de todo o aspecto medieval que isso nos traz, da composição literária e cênica até o barroquismo da direção de arte, da tendência imagética para algo semelhante aos afrescos pré-renascentistas, dos rituais e cultura de nações entre os Urais, o Cáucaso e o litoral do Mar Cáspio.

Mas engana-se quem pensa que isso está posto de forma puramente enraizada no século XVIII, o século do poeta biografado. Paradjanov intervém com elementos seculares, seja na dessacralização de alguns objetos e cenas, seja no uso diferente para eles, algo bem mais próximo das criações artísticas de vanguarda do século XX do que da cultura armênia ou georgiana de 200 anos antes. É na vertigem dos sentidos dessas duas épocas que o diretor nos faz conhecer uma vida e sob imagens planas, sem perspectiva ou plano de fuga, desenvolvemos as descobertas, os desejos e as frustrações do poeta, um exercício que, sem percebermos, acabamos fazendo juntamente com o diretor. A Cor da Romã se constrói à medida que se exibe para nós, e para cada um que o vê, há um filme diferente na tela.

O que me incomoda um pouco na obra é a repetição completamente desnecessária de alguns takes e também os abruptos cortes à semelhança do Primeiro Cinema. Este último caso não me incomoda muito porque há momento em que esses cortes são bem vindos e fazem sentido, mas em outros, chegam a quebrar o nosso encanto diante da assombrosa beleza das cenas — a cena de um dos cavalos passando e desaparecendo como mágica em frente a um castelo, na sequência da oração antes da caça, é o exemplo mais incômodo disso. Nada, porém, é capaz de apagar do espectador a experiência obtida na sessão de A Cor da Romã. Este é definitivamente um filme para ver o maior número de vezes possível e esperar que a cada vez um novo encontro se dê e um novo mundo se abra. Sergei Paradjanov conseguiu colocar um Universo inteiro de almas em um filme de 79 minutos. Um gênio, definitivamente.

A Cor da Romã (Sayat Nova) — URSS, 1969
Direção: Sergei Paradjanov
Roteiro: Sergei Paradjanov (com poemas de Sayat Nova)
Elenco: Sofiko Chiaureli, Melkon Alekyan, Vilen Galstyan, Gogi Gegechkori, Spartak Bagashvili, Medea Japaridze, Hovhannes Minasyan, Onik Minasyan
Duração: 79 min.

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