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Crítica | A Decadência de uma Espécie

por Ritter Fan
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estrelas 3,5

Alguns filmes se beneficiam muito da força da história sendo contada e esse é o caso de A Decadência de uma Espécie (um título “mão pesada” brasileiro, apesar de relacionado com o objeto da obra). Muita coisa que poderia ser considerada mal trabalhada nessa produção germano-americana dirigida por Volker Schlöndorff, de O Tambor e Baal é curada pela premissa assustadora e urgente extraída da obra atemporal O Conto da Aia, de Margaret Atwood.

Em um futuro distópico, os EUA são a República de Gilead, uma ditadura militar teocrática em que a mulher foi reduzida quase que exclusivamente à sua função de reprodutora, sendo divididas em castas com funções específicas com as esposas no topo da pirâmide, as aias no meio e as “martas” como o equivalente das empregadas domésticas embaixo. Nesse mundo que vive em uma guerra civil de cunho religioso, a taxa de natalidade caiu abruptamente e, com base em uma leitura literal do Velho Testamento, as esposas são as companheiras oficiais de seus maridos (chamados de Comandantes) e não necessariamente podem ter filhos, seja em razão da idade ou outro fator qualquer. As aias, então, são as concubinas cuja função é ter filhos com o Comandante que serão, ato contínuo, criados pelas esposas. Para falar português claro, as aias, por não terem escolha (a não ser a morte, claro), são ritualisticamente estupradas pelos Comandantes em nome de Deus e literalmente sob os olhos das esposas.

Nesse tenebroso mundo dominado pelos homens que claramente transporta para uma outra realidade situações hoje vividas por diversas mulheres debaixo de religiões fundamentalistas e outras circunstâncias, somos apresentados a Kate (Natasha Richardson) que, fugindo com o marido e a filha de Gilead, é capturada e levada ao Centro Vermelho, onde as mulheres férteis sofrem lavagem cerebral para tornarem-se aias. Quando ela acaba seu “treinamento”, ela passa a viver na casa da elite local, sob o olhar ciumento de Serena Joy (Faye Dunaway) e sob olhar desejoso do Comandante Fred (Robert Duvall), perdendo seu nome de nascença e passando a chamar-se, apenas, de Offred ou “De Fred”, uma denominação que termina de extirpar qualquer traço de identidade e individualidade, transformando-a em nada mais do que a propriedade de um homem.

Quem já leu o livro perceberá duas coisas que ficam evidentes logo no início. Diferente da obra de Atwood, a narrativa é linear a partir do ponto de vista de Offred, mas mantendo-a em terceira pessoa. No entanto, em troca, em termos de encandeamento de acontecimentos, o livro é quase que integralmente respeitado. A exceção fica por conta do final sanitizado hollywoodiano que era completamente desnecessário, mas que nem de longe destrói o espírito do que é abordado. Todavia, minha função não é comparar livro e filme, pois a palavra-chave, aqui, é adaptação e considero importante saber separar o material fonte do resultado nas telonas. O prolífico Harold Pinter, de A Mulher do Tenente Francês, escolheu sabiamente a narrativa linear, ainda que isso retire muito do mistério sobre Gilead e sobre a função das aias que é mantido na obra literária. Mas, em termos narrativos, ainda que ele tenha tomado seus atalhos, Pinter soube apresentar as questões principais de maneira muito eficiente.

O primeiro grande problema do roteiro, porém, está na natureza episódica do que nos é apresentado, quebrando um pouco o ritmo narrativo. Pinter quase faz uma obra para TV em determinados momentos, só faltando o intervalo comercial entre um segmento e outro. Mas o grande ponto fraco fica mesmo nos 15 ou 20 minutos finais em que a ação parece quase aleatória e descompassada com o que veio antes, com um epílogo de trincar os dentes de tão “suave” e didático. Mas, no todo, o roteiro tende a funcionar ajudado pelo horror da história em si, que é o suficiente para atrair qualquer pessoa de bom senso – e de estômago forte – para essa visão cinematográfica da obra de Atwood.

A direção de Schlöndorff faz ótimo uso da beleza de Natasha Richardson, mantendo sua câmera nela em closes e planos médios por boa parte da projeção, mesmo que a atriz não corresponda visualmente aos horrores que a cercam. Mas essa aparente serenidade em seu semblante casa perfeitamente bem com o design de produção Thomas A. Walsh e a fotografia de Igor Luther que nos apresenta a uma Gilead idílica, iluminada, carregada em tons claros, especialmente o branco. É como o paraíso na Terra mascarando uma sociedade putrefata. As cores lisas usadas nos figurinos – vermelho para as aias, azul para as esposas – ajudam nessa impressão Desperate Housewives em que a aparência de normalidade é inversamente proporcional ao que está por trás de cada parede. Ainda que vejamos o mundo exterior, isso se dá quase que exclusivamente por intermédio de aparelhos de televisão de propaganda que mostra uma Gilead vitoriosa sobre uma pouco abordada rebelião. Com isso, o diretor nos mantém presos a quase um ambiente apenas – a casa do Comandante – refletindo a completa ausência de opções de Offred.

Mesmo considerando os problemas de ritmo causados por um roteiro quase episódico e também considerando o final de revirar os olhos, a grande verdade é que a premissa é poderosa demais para ser ignorada. Com todos os seus defeitos, A Decadência de uma Espécie é uma obra que precisa ser assistida.

A Decadência de uma Espécie (The Handmaid’s Tale, EUA/Alemanha – 1990)
Direção: Volker Schlöndorff
Roteiro: Harold Pinter (baseado em romance de Margaret Atwood)
Elenco: Natasha Richardson, Faye Dunaway, Aidan Quinn, Elizabeth McGovern, Victoria Tennant, Robert Duvall, Blanche Baker, Traci Lind, Zoey Wilson, Kathryn Doby, Reiner Schöne, Lucia Hartpeng, Karma Ibsen Riley, Lucile McIntyre
Duração: 109 min.

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