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Crítica | A Espada Era a Lei

por Giba Hoffmann
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Em 1960, Walt Disney encontrava-se dividido entre as tarefas administrativas e a função como visionário criativo central de sua companhia, que já se tornara um absoluto gigante da indústria (embora suas dimensões atuais relativizem as próprias glórias passadas). Deixando para o irmão mais velho Roy as tarefas mais ligadas à gerência da empresa, Walt deixou o cargo de direção para focar-se na criação. Não demorou para que ele tivesse que tomar uma decisão criativa a mando de Roy: com os parques temáticos exigindo grande parte dos investimentos, era necessário minimizar os custos que escoavam pelo setor de animação. É dito inclusive que Roy sugeriu que a produção das animações fosse suspensa (como se atreve!), compromisso que obviamente fora prontamente recusado por Walt. De qualquer forma, dentre os dois projetos que circulavam pelas pranchetas de desenho do estúdio, Chanticleer e A Espada Era a Lei, somente um deles veria a luz do dia.

Chanticleer era uma daquelas animações que cambaleava pelo inferno de produção desde a década de 1940. Adaptação de uma peça satírica francesa pré-guerras, o conto traria um galo narcisista no papel principal em mais uma história contada toda com animais antropomorfizados. A maioria dos animadores do estúdio encontrava-se bastante investida no resgate do projeto, que recomeçara do zero ali no início dos anos 1960. Paralelamente, o roteirista Bill Peet trabalhava quase que por conta em uma adaptação de The Sword in The Stone, primeiro livro da série The Once and Future King (no Brasil, O Único e Eterno Rei) de T. H. White, série bastante famosa de romances adaptando algumas passagens da saga arturiana.

A proposta de Bill Peet venceu Chanticleer de goleada: com o roteiro já mais redondo e à prova de falhas, uma proposta mais charmosa e acessível com óbvio potencial para cativar as mentes de todas as faixas etárias e, de bônus, com personagens humanos significativamente mais baratos para se animar do que os animais da proposta concorrente. Decisão mais do que compreensível. Um conto de Rei Arthur pelos Estúdios Disney! Uma ideia que só não é mais óbvia do que genial. No entanto o resultado final, apesar de trazer consigo um inegável charme, acaba sendo uma entrada menos notável do que seus vizinhos de lançamento, configurando talvez o lançamento menos expressivo dos anos 1960 – o que não significa que não seja uma belíssima animação, mas que o filme falhe em atingir o nível de acabamento evocado por seu próprio potencial.

Neste primeiro volume da saga do Rei Arthur por T. H. White o foco se encontra sobre o jovem Wart, que tem sua vida de serviência à sua medíocre família adotiva interrompida pelo encontro inesperado com o misterioso mago Merlin, que declara ter vindo do futuro e possui um insuspeito interesse pela formação do garoto. O início do filme consegue acertar em um ponto que os atos consecutivos jamais conseguem retomar, que é justamente o clima de épico fantástico pelo qual o conto retratado clama. Somos introduzidos, via narração, à era das trevas de uma Inglaterra sem rei, cujas esperanças de prosperidade após a morte de Uther Pendragon desapareceram gradativamente ao ponto em que a própria espada na pedra, esperança do reerguimento do reino, encontrava-se já totalmente equecida.

Quem rouba a cena desde o início é a carismática rendição do mago Merlin, acompanhado da coruja ranzinza Arquimedes. Com sua cabana repleta de livros, poções e aparatos místicos variados, o misterioso homem que envelhece ao contrário aguarda pacientemente a chegada do profetizado futuro rei enquanto resmunga a respeito da barbárie destes tempos medievais. Mediante a chegada de Wart, o mago declara que é hora de fazer as malas – o que nos faz pensar que ele construiu a cabana e se instalou ali apenas para aguardar o momento em que, tentando recuperar uma flecha, o garoto cairia pelo telhado de palha direto na cadeira oposta à de Merlin. Wart se mostra absolutamente estarrecido, fato que é bem representado pela expressão de seus olhos, uma das características mais marcantes do personagem. Identificando-nos com o personagem, nos empolgamos para saber de que forma essa criança poderá mudar os rumos e trazer a glória novamente ao reino. Que aventuras o aguardam?

Bem, digamos que, caso Gandalf buscasse Frodo e prosseguisse pelo restante da narrativa com uma sequência de segmentos educativos visando a edificação intelectual e moral do jovem hobbit, O Senhor dos Anéis dificilmente seria lembrado como um épico. Mas é essa a via optada pela produção de A Espada Era a Lei, o que cria um sentimento de estranheza e desconexão entre a bem executada introdução e o restante dos atos do filme. Não apenas isso, mas mesmo a ligação das diferentes lições de Wart entre si acaba enfraquecida pela ausência de uma trama central ou mesmo um antagonista bem definido, para além das idiossincráticas oposições de um lobo faminto, um sapo sacana e um piranhão nervoso, um falcão que passa voando e, finalmente, uma bruxa tresloucada que deseja apenas semear um pouco de maldade por aí.

Tomadas da forma como acabam aparecendo mais espontaneamente ao espectador – como segmentos separados e até mesmo independentes – as lições de Merlin contém um charme inegável, bem retratado pela animação que lança mão de visuais bastante notáveis e sequências musicais um tanto soltas e minimalistas, mas que cumprem bem o trabalho. O problema é que isso é tudo que elas têm a oferecer, o que faz com que a obra fique no meio termo: nem o musical artístico, nem a narrativa animada.

Os temas levantados nas lições de Merlin gravitam em torno da necessidade reconhecida pelo mago de um rei que tenha cérebro e não apenas músculos. Na sequência dos peixes é o momento em que efetivamente ele adereça o tema, cantando sobre a ordem natural das coisas. Porém já ali nota-se um alongamento exagerado, que denuncia exatamente o ponto onde o fio narrativo da película simplesmente se perde para nunca mais voltar. Seguimos com os esquilos, numa sequência que mira a comédia mas termina na figura gratuita de uma esquilinha de coração partido e sem esperanças – “fade-out pra ela e que se dane, vamos para a próxima”!

Por sua vez, a lição de vôo de Wart recria um pouco da tensão da perseguição no rio, antes de acabar na outra sequência memorável do filme, que é o duelo de magos entre Merlin e a Madame Min. Destinada a seguir carreira como personagem no Universo Pato dos quadrinhos Disney, Min aparece aqui já aos 45 minutos do segundo tempo apenas para representar uma ameaça mais concreta do que os inocentes animais que perseguem Wart ao longo do filme. Em termos de animação, o duelo entre Merlin e Min é bastante notável e empolga. Porém, acaba por não fazer muito em termos de narratva, uma vez que não se trata nem mesmo de um duelo onde Wart tome parte e a motivação da Maga é suficientemente vaga para que tenha qualquer ligação com a jornada do futuro rei.

A animação segue a mesma abordagem e faz uso das novas técnicas de fotocópia estreadas em 101 DálmatasVemos novamente o reaproveitamento de frames e as novas técnicas de coloração, resultando em um traço que tende para o sketch não apenas em termos dos backgrounds, como no caso do filme anterior, mas também dos personagens, escolha que combina bem com seu design assumidamente mais cartunesco, que se afasta do realismo e detalhismo encontrado em A Bela Adormecida, por exemplo. A comparação é interessante: o ambiente do filme poderia ser outro, caso o design de cenários e personagens e as técnicas de animação fossem as mesmas do clássico fantástico ou mesmo de outros filmes que seguiram sua linha como Peter Pan.

O estilo mais despojado e relaxado do traço combina inegavelmente com uma abordagem do conto que, como vimos, não preza pelo caráter épico-fantástico mas antes por uma história intimista e simples. Porém ainda assim não deixa de ser uma escolha que cause estranhamento em relação ao conteúdo e ambientação intentados pela película. Enquanto que os backgrounds rascunhados, com contornos mais leves e coloração um tanto psicodélica foram uma escolha mais do que acertada para representar a Londres contempôranea dos anos 1950/1960 de 101 Dálmatas, o efeito não é o mesmo quando se trata da lendária Londres das lendas arturianas, que parece pedir pela abordagem detalhista e engradecedora das produções do estúdio no início dos anos 1950.

Por outro lado esta é a identidade do filme, e é preciso conceder que talvez seu histórico de produção e seu caráter um tanto apressado de acabamento possa ter tido um peso sobre uma visão que não se concretizou por inteiro no produto final. Embora enquanto experiência isolada o filme não guarde momentos tão grandiosos quanto outros contemporâneos, trata-se de várias maneiras de uma produção visionária, que dispensou o jogar seguro e optou por uma leitura bastante única do material original.

Afinal de contas, será que A Pequena Sereia não tomou inspiração na sequência de Merlin e Wart como peixes (com direito à perseguição e com um Wart que lembra muito o Linguado)? E a sequência musical de A Bela e a Fera, “Seja Nossa Convidada”, não tomou uma notinha de “Higitus Figitus”, onde Merlin anima e põe para dançar os objetos de toda a cabana? Por fim, será que sem o estilo mais despojado e o traço cartunesco e expressivo desta versão do mago Merlin, sequer surgiria a ideia para o irreverente Gênio de Aladdin (inclusive a cena final em que Merlin volta de suas férias na praia é exatamente a mesma que veríamos repetida com o personagem de Robin Williams, trinta anos depois!)?

Sejam estas inspirações efetivas ou não, o fato de que o filme esboça momentos que viriam a marcar nada menos do que a grande Renascença do estúdio nos mostram que, ainda que com um roteiro atipicamente desordenado por parte do já consagrado Bil Peet, os produtores estavam visando algo especial aqui, fato que pode ter sido traído pelo caráter um tanto inconsistente da película. Inconsistência que se prova inclusive em detalhes como o fato de que, na dublagem original, Wart tem nada menos do que três dubladores – e sim, de forma absurdamente perceptível!

Inconsistência que volta por fim para atrapalhar o filme em seu encerramento, após o duelo de magos e a briga entre Wart e Merlin. Sem evocar absolutamente nenhuma das lições ou desenvolvimentos do filme e agindo a partir da mais pura sorte e coincidência, temos a adaptação da famosa cena em que o escudeiro Wart inocentemente retira a Excalibur da pedra, tornando-se o Rei da Inglaterra. Claro que se trata apenas de adaptar à risca a adaptação de T. H. White sobre os contos tradicionais – mas qual é o ganho disso e onde isso se encaixa em relação ao restante do filme? Coroando (sem trocadilhos) a inconsistência narrativa, A impressão que fica é a de um final repentino e anticlimático, e a de que a cena em questão deveria ter ocorrido, no mais tardar, ao final do segundo ato da película ao invés de encerrá-la.

A Espada Era a Lei é uma entrada curiosa no catálogo Disney, e é compreensível seu caráter de filme frequentemente esquecido, o que não deixa de surpreender em se tratando de uma adaptação de parte da história do Rei Arthur pela Estúdios Disney nos anos 1960. Uma visão inspirada e única acaba sofredo com a perda de foco e vai-e-vem entre sequências que fragmentam a narrativa. De uma aventura musical formadora de caráter com espada e magias pela Inglaterra arturiana, fomos a uma sequência de vídeos educativos que, ainda que não sem seu charme e beleza, parecem desalinhados em termos de storytelling. Mesmo com seu próprio potencial pesando contra si mesmo, o filme consegue entregar uma experiência boa e, encarado como o que é, faz por merecer seu lugar ao lado das produções de sua época.

A Espada Era a Lei (The Sword in the Stone) — EUA, 1963
Direção:
 Wolfgang Reitherman
Roteiro: Bill Peet (baseado no livro de T.H. White)
Elenco: Rickie Sorensen, Sebastian Cabot, Karl Swenson, Junius Matthews, Ginny Tyler, Martha Wentworth, Norman Alden, Alan Napier
Duração: 79 min.

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