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Crítica | A Face do Führer (1943)

por Gabriel Carvalho
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“Ven Der Fuehrer says “ve never vill be slaves,” ve heil! Heil! But still ve vork like slaves! While Der Fuehrer brags and lies and rants and raves, ve heil! Heil! And vork into our graves!”

Contém spoilers.

Em Tempos Modernos, comédia datada de 1936, a missão do personagem interpretado por Charlie Chaplin, em papel inesquecível, do homem que não é nada além de gado, era parafusar, repetidamente, peças em uma fábrica qualquer. Alguns anos mais tarde, em A Face do Führer, a missão do protagonista do curta-metragem animado, situado durante a onda de criações com teor propagandista – ninguém mais, ninguém menos que o próprio Pato Donald (Clarence Nash) – também é parafusar, repetidamente, objetos, mas balas ao invés de peças genéricas do conjunto industrial de uma “outra época”. Os tempos, porém, não são nenhum pouco distantes. As similaridades entre as obras, na verdade, são, curiosamente, inúmeras, porque o pensamento levado adiante pela animação, visando a adesão ideológica do público, sugere, surpreendentemente, a sociedade nazista parecida, em certas pontuações, com a de demais nações, também compartilhando da modernidade caótica, das repetições exaustivas e monótonas em decorrência da divisão de trabalho, da miséria em geral. Eis a tentativa – extremamente bem sucedida -, por parte de Walt Disney, em criar repulsa da população americana em relação à sociedade nazista, mesmo expondo erros próprios que tornam-se, todavia, problemas dos outros. As semelhanças que não queremos ver

O pão que come é duro como pedra. O café que toma é um grão. O gosto de bacon é um mero gosto. Como é ruim viver sob o regime nazista! A mente deve ser enaltecida, comandada pelos ditamentos existentes dentro do Mein Kampf. O trabalho? 48 horas por dia. Como um curta-metragem de menos de 10 minutos consegue evidenciar ao espectador uma aversão ao nazismo sem, em momento algum, sugerir o Holocausto, sugerir a guerra armada em sua literalidade, aumentando, em consequência, a compra de títulos de guerra e o desejo fervoroso dos americanos em vencer o combate, lutar pela sua própria nação? A resposta para essa pergunta torna todo o processo criativo por trás dessa animação mais especial, justamente por se tratar de uma contra-intuição, trabalhando a propaganda de uma maneira completa, no entanto, distante da como o nazismo trabalhou, retratando suas ideologias problemáticas de maneira igualmente manipulativa, mais explícita e menos cartunesca, não menos genial. O gênio também pode ser do mal, não é verdade? O símbolos também são fortes nos dois casos, distintamente interessados. A casa do protagonista, por exemplo, é uma versão imobiliária do rosto caricato de Adolf Hitler. Os objetos no interior saúdam. Como um americano pode gostar de um regime que o obriga a quem saudar? Eles não tem falsos líderes.

Já a engraçadíssima canção que embala a animação – homônima ao filme, mas lançada previamente, “Der Fuehrer’s Face”, escrita por Oliver Wallace – é marcante, sendo de uma melodia que nos desperta, paralelamente, tanto o jocoso quanto o autêntico, rigoroso, implicando a existência de uma banda militar sem a seriedade costumeira de uma banda militar. Novamente, entra o desmerecimento através da piada, do ridículo. Com o auxílio de sua cômica letra, a música possibilita diversas implicações sobre o nazismo, rejeitando-o por meio do humor aguçado, no qual entende-se o próprio como uma porta para enxergamos o absurdo do mundo suposto – ou retratado. Um regime que, antes, pensaríamos como uma piada, até se provar real. Em “quando o Führer diz ‘nunca seremos escravos’, nós saudamos” e trechos consequentes, a letra está sendo bastante clara. O ditador torna sua própria política um processo estético, de aparências, como um demagogo dizendo ao povo o que ele quer, mas extremamente distante – ao menos, como essa animação entende – de suas verdadeiras intenções. Não importa a veracidade da miséria na nação alemã, mas importa, nessa análise, a maneira como a rejeição é criada, que também poderia ser fomentada sem qualquer um desses artifícios, mas não com indicação livre. A verdade é adulta.

O caráter galhofa das animações de Walt Disney, mesmo assim, não some, dando margem a uma criação divertida, embora nunca inócua, sempre tramando algo mais esperto. O quinteto musical é composto por personagens estranhos, extremamente disformes corporalmente, com peitos estufados e bundas empinadas. A equipe da animação quer ridicularizar os nazistas, quer ridicularizar os adversários dos americanos, e consegue isso na primeira mensagem passada pelo curta-metragem, na qual um dos membros dessa banda tem um retalho com o símbolo nazista cobrindo uma parte de sua calça, quase aludindo a uma roupa íntima coberta por suásticas. As criaturas apresentadas, portanto, são completas aberrações. Cada uma dessas piadas ambulantes, aliás, também representa figuras proeminentes do Eixo: Joseph Goebbels, Heinrich Himmler, Hirohito, Hermann Göring e Benito Mussolini. A melhor maneira de desconstruir o seu adversário é provando-o do ridículo. O universo, ao mesmo tempo, é completamente moldado por suásticas, dos postes às árvores, nos levando a imaginar e entender o autoritarismo em questão, sem permitir o individualismo de opiniões, mas uma massa de idealistas nazistas. “Nós saudamos”, repete. O curta-metragem animado em questão é definitivamente uma propaganda completa.

Já quando enxergamos sobriamente a obra, em uma outra vertente, entendemos, dentre tantas questões consideravelmente polêmicas nos dias de hoje em relação ao conteúdo do curta, a representação japonesa como completamente racista, mas lembrem-se, estamos em meio à guerra para terminar a guerra que terminaria com a guerra. Os inimigos dos “heróis” são a encarnação do mal, como muitos acreditam e pouquíssimos discordam – por que um desacordo, afinal? A guerra romanceada, portanto. A ingenuidade, de fato, não está na crença do mal, mas na crença do bem imaculado, intocável, embora nações estejam longe de serem personificações divinas. Donald enlouquece, assim como o personagem de Charlie Chaplin enlouqueceu, dando origem a um psicodélico segmento, muito bem animado. Onde essa retratação é distante do retrato da sociedade americana? A discussão de liberdade, democracia, portanto, é o que separa nazismo do “americanismo”, aos olhos do americano. Quer povo mais livre que o estadunidense? Ninguém é intolerante, não é mesmo? O ponto que o público rejeita não é o aparafusamento das balas, mas a saudação à face do Führer, fazendo-o olhar com desprezo ao nazista e estufar o próprio peito em relação a si mesmo, esquecendo de seus problemas, mesmo que eles estejam diante de seus olhos.

A Face do Führer, seguindo tal pensamento propagandista, é uma das obras-primas dessa mistura pouco argumentativa entre arte e política. Ao sugerir ao grande antagonista, o abominável nazista, características da sociedade que os americanos, que os ingleses e os franceses também possuem, estas sendo pouco diferentes entre si, pinçando um ser específico para se posicionar acima de outro, A Face do Führer justamente esconde essas “óbvias” similaridades – independente de serem completamente inventadas ou não -, nesse paradoxo delicioso de ser observado e analisado. O espectador olha para seu próprio ambiente, seu próprio cotidiano e modo de vida, criticado por Chaplin poucos anos antes, e não mais quer enxergar a miséria, justamente por ela estar associada ao nazismo, criticado em tantas outras questões, principalmente em razão da ausência de liberdade e os massacres. Os americanos não massacram. Os tons das cores caminham para o colorido da conclusão. A Estátua da Liberdade tinha que ser o símbolo americano para contrastar com a suástica odiosa. Muito mais do que fortalecer a rejeição dos americanos à Alemanha, Walt Disney está interessado em fortalecer o amor dos americanos aos Estados Unidos. O ufanismo irrefreável. “Como sou feliz por ser um cidadão dos Estados Unidos da América!”, conclui o Pato Donald. Não temos comida para nosso povo? Quem não tem comida é o nazista!

A Face do Führer (Der Fuehrer’s Face) – EUA, 1943
Direção:  Jack Kinney
Roteiro: Joe Grant, Dick Huemer
Elenco: Clarence Nash, Billy Bletcher
Duração: 8 min.

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