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Crítica | A Filha Perdida, de Elena Ferrante

por Cida Azevedo
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Leda é uma mulher de meia-idade que, após a mudança das duas filhas para outro país, decide tirar férias no litoral. É quando conhece uma barulhenta família napolitana da qual a jovem Nina e a filhinha Elena — com sua boneca inseparável — fazem parte. Dia após dia, Leda observa com crescente fascinação a figura da jovem mãe, pensando em sua própria relação com as filhas e a maternidade. A aproximação dessas duas mulheres toma rumos inesperados, e, em poucas páginas — são menos de 200 — Elena Ferrante desenvolve uma narrativa peculiar e incômoda, especialmente num mundo que ainda idealiza tanto a figura “sagrada” da “mãe”.

Por meio de Leda, que narra o romance em primeira pessoa, Ferrante apresenta um retrato intenso e quase insuportável do que é ser mãe. As personagens maternas, aqui, sentem-se a um só tempo apaixonadas e sufocadas por seus filhos, plenas e anuladas em suas identidades, anseiam por uma liberdade que, quando conquistada, mostra-se intolerável. Por meio de, na maior parte do tempo, fluxo de consciência da narradora, o leitor conhece o subconsciente de Leda, que é muito bem representado na seguinte citação: “Eu estava como alguém que conquista a própria existência e sente um monte de coisas ao mesmo tempo, entre elas uma ausência insuportável”. A personagem de Ferrante, bem como sua linguagem, é profunda, viva, pesada.

Para um leitor familiarizado à nossa maravilhosa Clarice Lispector, creio que os ecos sejam inevitáveis. Assim como Clarice, Ferrante opera com o que há de mais íntimo no ser humano, especialmente na figura feminina; a predominância do interior e a linguagem metafórica, cheia de associações e adjetivos inusitados (como “amor gasoso”) são marcas das duas escritoras. Também é característico de ambas esse estado de desconforto no próprio corpo, na própria vida, que seus personagens experienciam. O enfrentamento de sua “escuridão líquida”, para usar uma expressão do livro, é presente e lança também o leitor numa série de questionamentos com os quais nem sempre é fácil lidar.

Nesse contexto, também ganha destaque a epifania: o momento de revelação, em que seu mundo interior é sacudido e jogado numa realidade até então despercebida. Ferrante constrói alguns momentos assim ao longo de A Filha Perdida, e até coisas simples e bucólicas — como, digamos, uma boneca — servem como instrumento para lançar esses personagens num caminho sem volta. Leda e Nina projetam-se uma na outra numa relação meio indefinida, meio ambígua, e ambas vão realizar ações surpreendentes e muito simbólicas de tudo o que é trabalhado no próprio enredo.

A força e a predominância das personagens femininas também se destacam: Leda, Nina e sua pequena filha Elena não são as únicas. Há Brenda, uma viajante que fascina a narradora enquanto jovem; Rosaria, a cunhada gestante de Nina; a infeliz mãe da própria protagonista — e suas filhas, também lembradas em suas individualidades e complexidades. As mulheres dominam o livro e os poucos personagens masculinos são um pouco patéticos, meio perdidos entre a obscuridade delas. Assim como ocorre com leitores de Clarice, é bem possível que homens e mulheres tenham percepções diferenciadas do romance em virtude desse tratamento tão intimista dado às personagens femininas.

Elena Ferrante, mesmo sem revelar a verdadeira identidade por trás do pseudônimo, ganhou destaque na literatura pelo mundo afora. Ao ler A Filha Perdida, é bem possível entender o porquê: de um estilo peculiar e marcante, o livro mexe com o leitor de um jeito que poucas obras são capazes. Penso que deva ser difícil manter-se indiferente a essa leitura: alguns vão gostar muito; outros, detestar. Mas essa que lhes escreve, sem dúvida, faz parte do primeiro grupo.

A filha perdida (La figlia oscura) – Itália, 2006
Autora: Elena Ferrante
Publicação: Editora Intrínseca, 2016
Tradução: Marcello Lino
176 Páginas

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