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Crítica | A Harpa da Birmânia (Não Deixarei os Mortos)

por Luiz Santiago
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A Harpa da Birmânia (1956) é um filme anti-bélico de Kon Ichikawa, com roteiro inspirado na obra Michio Takeyama, que, segundo o diretor, tinha aspectos de fantasia que foram suprimidos no filme para que a mensagem de guerra tivesse verdadeiro impacto no espectador. Anos depois, em 1985, o cineasta refilmaria a obra, desta vez em cores e com um outro elenco.

A obra nos conta a história de um grupo de soldados japoneses ao final da 2ª Guerra Mundial. Eles estão na fronteira da Birmânia (Myanmar) com a Tailândia e seguem na luta contra os o Império Britânico (na época, ainda dominando a Índia), China e Estados Unidos, em uma guerra que se arrastou de 1942 a 1945 e recebeu o nome de Guerra da Birmânia, uma das muitas campanhas da Segunda Guerra no sudeste asiático.

No filme, os soldados do Capitão Inouye estão isolados e procurando outros combatentes do Exército Japonês. Eles cantam e percorrem as monhas e trechos das florestas da região até que chegam em uma vila, comem e cantam, e recebem a notícia de que a guerra acabou. Um outro grupo de soldados japoneses ainda resistem em uma montanha afastada. Cabe ao harpista Mizushima tentar dissuadi-los da resistência e fazer com que se rendam. É inútil continuar lutando.

Desde o início de A Harpa da Birmânia percebemos que o tratamento dado à guerra e a base narrativa são bem diferentes daquilo a que estamos acostumados. Existem dois lados em combate, mas não há demonização de nenhum deles. A guerra é um horror em si e seu questionamento se dá antes mesmo de qualquer soldado falar alguma coisa a respeito. É através das atitudes do grupo de soldados do Capitão Inouye que temos contato com a humanidade de cada um. Mesmo em guerra, é a sensibilidade, o companheirismo e o lirismo que marcam o longa desde as suas primeiras sequências. Alguns espectadores podem estranhar ou até desgostar da forma como as cenas musicais são colocadas na obra — e de fato elas não são completamente orgânicas — mas é possível contextualizá-las à medida que o filme avança e se entende a verdadeira intenção do diretor.

É importante destacar que a cultura da Birmânia é fortemente marcada pelo Budismo Teravada, a mais antiga escola budista e que mais se aproxima do budismo inicial, porém, incluindo diversas tradições locais, dependendo dos países onde é praticada com grande intensidade, como Camboja, Laos, Tailândia, Sri Lanka e Myanmar (Birmânia). Esse aspecto tem um peso notável na construção da atmosfera na segunda parte do filme, especialmente na figura do soldado Mizushima, que o diretor mostra desde o início como uma espécie de “escolhido” dentre os seus companheiros de guerra. Isso também é sentido e realçado no roteiro, porque o tratamento dado ao grupo não é apenas de homens que estão em um lugar para destruir inimigos e vencer a guerra. Embora a honra e o engajamento na luta estejam claros, esta não é a sua motivação principal. Os soldados aqui estão cansados da guerra. E são tratados e se comportam como uma família.

Ichikawa alia a tradição cinematográfica japonesa — da atuação herdeira dos teatros Nô e Kabuki até a grande importância dada a elementos da natureza e arquitetura — a um renovo na forma como narrar a história. Isso fez de A Harpa da Birmânia um dos filmes pioneiros a tratar a guerra a partir do ponto de vista dos japoneses e também uma obra que ao mesmo tempo que respeita e inclui elementos da cultura de sua nação, abre-se para o Ocidente, seja através da inclusão de algumas cenas com soldados falando em inglês, seja na narrativa mais dramatizada, embora jamais piegas ou clichê.

Há planos e sequências neste filme cuja direção, fotografia, montagem e trilha sonora trabalham juntos para conseguir um efeito quase celestial sobre espectador e talvez as mais icônicas dessas sequências sejam, na ordem, a que Mizushima descobre pela primeira vez o grupo de mortos e se vê marcado pelo sentimento de proteção desses soldados não enterrados/queimados; e a segunda, a que ele, em sua primeira noite no templo, ouve um garoto tocando harpa e vai ter com ele. Nos dois casos, o ritmo interno da ação, o corte preciso de uma cena para outra, os movimentos suaves da câmera e a musicalização estão em plena harmonia. Impossível não ser arrebatado para a tela nesses momentos.

Muitos e bons filmes de guerra foram realizados ao longo da história do cinema. Boa parte deles com uma abordagem encarada como “ação”, onde a justiça deve ser feita na batalha do lado bom contra o lado mau. Outros filmes, nos quais se incluem a A Harpa da Birmânia, preocupam-se em nos mostrar a essência daqueles que batalham e como tudo em volta deles se torna ainda mais horrível, condenável, inútil. Kon Ichikawa nos convida a pensar a guerra a partir de um outro ponto de vista, um olhar que raramente se imagina utilizar para a guerra. E isso, não porque ele queria minimizar os efeitos ou ser conivente com a tragédia. A Harpa da Birmânia é muitas vezes chocante e coloca em todos a responsabilidade da guerra. Mas a questão principal do filme não é essa culpa compartilhada. É ainda maior que isso. Sua questão principal é aquilo que os homens perdem — e que jamais recuperarão — toda vez que voltam de um campo de batalha. É o processo pelo qual o homem e a humanidade perdem a poesia de suas almas.

A Harpa Birmânia / Não Deixarei os Mortos (Biruma no tategoto) — Japão, 1956
Direção: Kon Ichikawa
Roteiro: Natto Wada (baseado na obra de Michio Takeyama)
Elenco: Rentarô Mikuni, Shôji Yasui, Jun Hamamura, Taketoshi Naitô, Shunji Kasuga, Kô Nishimura, Keishichi Nakahara, Toshiaki Ito, Hiroshi Hijikata, Tomio Aoki, Norikatsu Hanamura, Sanpei Mine
Duração: 116 min.

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