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Crítica | A Insustentável Leveza do Ser (1988)

por Luiz Santiago
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The Unbearable Lightness of Being A Insustentável Leveza do Ser (1988) plano critico

estrelas 3,5

Ficção filosófica escrita pelo autor checo Milan KunderaA Insustentável Leveza do Ser é uma mistura de histórias de amor, vida, panorama político e social da Tchecoslováquia em 1968 e outras problemáticas que tornam a obra ainda mais profunda do que aparenta, embora muito disso tudo seja deixado de lado no final e a fita caminhe para abraçar a desesperança e a fatalidade pura e simples, quase se esquecendo dos robustos conceitos antes levantados.

Dize-se que o diretor Philip Kaufman propositalmente mostrou para os produtores uma versão bastante confusa do filme, com menos de 2h de duração, a fim de conseguir que eles pedissem para aumentar o tempo, que foi o que aconteceu, gerando um corte final quase 3h. Durante parte da produção, Milan Kundera foi consultado diversas vezes e não identificou grandes problemas nas mudanças e redirecionamentos que o diretor e o co-roteirista Jean-Claude Carrière faziam. Quando o filme foi lançado, porém, o autor não ficou exatamente feliz com o resultado geral, tomando a decisão de não divulgar o filme e não mais permitir que uma de suas obras fosse adaptada para o cinema.

Após ler a versão completa do roteiro de Carrière e Kaufman, sem as alterações que a montagem imprimia e sem ajustes de personagens e situações, como o fato de Daniel Day-Lewis ter colocado a condição de aceitar o papel apenas se a construção de Tomas mostrasse um personagem mais imperfeito do que o roteiro indicava, alguém que gerasse algum tipo de raiva no público; ou a luta política, marcada pela invasão da URSS à Tchecoslováquia, em 21 de agosto de 1968; o autor disse: “era exatamente assim que deveria ter sido feito“. Independente da versão que mais agrada a um ou outro lado, o fato é que A Insustentável Leveza do Ser é um livro muito complexo e é claro que não havia nenhuma intenção dos produtores ou do estúdio em lançar um filme de quase 3h abordando de maneira ampla apenas questões existenciais e políticas. Era preciso ter maior foco em outra coisa, um produto que se pudesse vender com esta história de amor entre Tomás (Daniel Day-Lewis), Tereza (Juliette Binoche) e Sabina (Lena Olin).

A partir das aventuras pessoais de Tomas, um brilhante cirurgião que enxerga a vida como uma constante busca por prazer, sem maior apego às mulheres com quem se relaciona e sem diligência nenhuma para com os governantes de seu país… ele mesmo diz que não se importa com política — mas por questões morais irá defender até a última instância um artigo onde fez duras críticas aos soviéticos — vemos no enredo uma série de comportamentos, transformações sociais e luta por individualidade, liberdade e felicidade. Esta jornada é acompanhada a partir de diferentes tonalidades, ritmos e paixão através da trilha sonora de Mark Adler, que usa a música como o grande marcador emocional do longa, tendo maior relevância, nesse aspecto, do que a bela fotografia de Sven Nykvist (frequente colaborador de Ingmar Bergman), indicado ao Oscar.

Por sua vez, o fotógrafo sueco aproveita as deixas artísticas das personagens femininas (artes plásticas e fotografia) para explorar não apenas o corpo de Tereza e Sabina com extrema delicadeza, em planos com revelação sutil e impactante do sexo, dos seios, do rosto, mas muito de suas personalidades e sua dor. Reparem na estupenda atuação de Juliette Binoche, a personagem que encarna a linha filosófica levemente modificada de Parmênides, a qualidade oposta, a negação do estado de “leveza do ser” vivida por Tomas e, de maneira diferente, por Sabina. Tereza, ao contrário, simbolizada o “peso“, a vontade de pertencer, de assumir papéis sociais, de depender de algo. No roteiro (assim como livro), essas nuances ganham vozes em ideais de liberdade, servindo para a vida pessoal e para a situação política em que esses indivíduos estão inseridos.

Nykvist e Kaufman mergulham no íntimo dessas mulheres através de pinturas, fotografias, composições com espelhos e usam como gancho narrativo essa busca por trabalho e vontade de se expressar para, novamente, falar de opostos, da realidade sofrida do cotidiano e do escape que a beleza, o erotismo e a arte podem trazer. O cenário e alguns detalhes do ambiente íntimo do homem (a casa de Tomás) e da mulher (a casa/ateliê de Sabina) fecham esse ciclo de ligações do exterior versus interior, trazendo boas resoluções da direção de arte, que embora pudesse investir mais fortemente em contrastes de ambiente, no período do casal em Zurique, não chega a decepcionar. Durante todo o tempo, temos indivíduos sedentos de amor, encontrando problemas quando notam que a visão que têm do que é amor difere bastante da visão do outro.

Após a excelente sequência em preto e branco com imagens de arquivo mais inserção dos atores em vídeos envelhecidos; de luta revolucionária e discussões sobre a Primavera de Praga, teoria do Eterno Retorno e camadas, em diferentes sentidos, do que é companheirismo e compaixão, o filme é interrompido para uma “fase final, antes da tragédia” que destoa muito do restante da obra, fazendo cair a nossa percepção sobre o produto final. A introdução da perseguição política e noção dos “olhos do regime em todo lugar” através dos personagens de Erland Josephson e Stellan Skarsgård é o último elemento sóbrio do roteiro neste ponto, que abre as portas para a mudança do casal e a incoerente estadia que vemos deles no campo. Aí, salva-se apenas a tocante sequência com o cão Karenin, a trilha sonora, que se mantém soberba e a fotografia. Já o texto (e a montagem!) encontra um grande abismo de desvio temático e é até estranho que tenha sido indicado ao Oscar.

Apesar de Daniel Day-Lewis estar muito bom em seu papel, quem brilha aqui são as mulheres, Binoche e Olin. A diferença de personalidade entre as duas e a sensibilidade que emanam quando estão juntas é algo aplaudível. A cena em que uma fotografa a outra é uma das mais ternas e ao mesmo tempo desesperadoras do filme, ganhando bastante atenção do diretor, com uso diferente de câmera e planificação dinâmica, a partir de diferentes ângulos e perspectivas. Considerando apenas o aspecto filosófico, é compreensível que partamos daí para um final com imensa diferença de abordagem. De um lado, a leveza do ser, encabeçada por Tomas, presa pela âncora do pertencimento, encabeçada por Tereza, uma mulher doce para quem o modo de vida livre de compromisso e rótulos era, em uma palavra, insustentável. Como andamento narrativo, porém, é uma mudança não apenas brusca, mas mal encaixada com todo o restante.

Do corpo à mente, do público ao privado, da liberdade da vida à felicidade (questionável) da morte, A Insustentável Leveza do Ser é um filme de muitas faces. Alguns podem achar pura pretensão filosófica e outros um drama existencial espremido entre sexo e política. As duas opiniões, porém, não estão erradas. Por ter tempo de tocar em diversos aspectos da vida, a película gera sentimentos diferentes, inclusive no julgamento das ações dos personagens. Há quem veja que Tomas errou ao seguir o “peso” representado por Tereza, que neste sentido, acabou destruindo a “leveza” do marido. Outros acreditam que este era o único caminho possível. O caminho do amadurecimento.

Não importa o lado da moeda que o espectador esteja, sempre haverá identificação e separação quando se trata de levezas insustentáveis. O lado mais difícil e sensível de nós é sempre o lado que não sabemos como discutir sem brigar.

A Insustentável Leveza do Ser (The Unbearable Lightness of Being) — EUA, 1988
Direção: Philip Kaufman
Roteiro: Jean-Claude Carrière, Philip Kaufman (baseado na obra de Milan Kundera)
Elenco: Daniel Day-Lewis, Juliette Binoche, Lena Olin, Derek de Lint, Erland Josephson, Pavel Landovský, Donald Moffat, Daniel Olbrychski, Stellan Skarsgård, Tomasz Borkowy, Bruce Myers, Pavel Slabý, Pascale Kalensky, Jacques Ciron, Anne Lonnberg, Clovis Cornillac, Leon Lissek
Duração: 171 min.

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