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Crítica | A Metamorfose, de Franz Kafka

por Luiz Santiago
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Nascido em Praga, atual República Tcheca (e na época, Império Austro-Húngaro), em uma família de judeus asquenazes, Franz Kafka teve uma infância e adolescência bastante solitárias e fortemente marcadas pela personalidade dominadora, agressiva e arrogante do pai. É amplamente sabido que Kafka canalizou essa relação para muitas de suas obras, sempre elencando um personagem fortemente dominador, algum elemento de solidão e/ou abandono e algum personagem de quietude, passividade ou resignação, que normalmente representava a mãe. O ponto de quebra disso vinha sempre com algum indivíduo “bananão” que, de alguma forma, quebrava os elos das correntes que o prendia. Em A Metamorfose, esses estereótipos também vêm à tona. E tudo começa…

“…em uma certa manhã, [quando] ao acordar após sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso inseto”. Diferente do que a maioria dos leitores esperam, o clímax de A Metamorfose está no seu começo. Não há preparação de personagens, estabelecimento de cenário, indicações de motivos para o horror que se anunciava. Nós começamos o livro e lá está ele, o ponto alto. Daí em diante, percorremos uma longa estrada (bem… nem tão longa assim, porque o livro tem pouco mais de 100 páginas) onde vemos o que acontece com o pobre Gregor-Inseto. Não existe didatismo operando na prosa de Kafka. Ele não se esforça nem um pouco para explicar os motivos pelos quais essa transformação aconteceu. O texto foge de explicações simples. No lugar delas, temos indícios que, um momento, nos fazem pensar a obra de maneira literal (ou seja, por algum motivo, Gregor se transformou em um monstruoso inseto) e noutro, de maneira simbólica. E é nesta segunda visão que as coisas se tornam realmente instigantes.

O mal que transformou o jovem Samsa pode ser visto de inúmeras maneiras alegóricas e metafóricas, sendo todas elas possíveis, um meio de utilizar a obra para ler determinada situação comum (ou não) onde um indivíduo se vê preso a uma condição lastimável diante da qual tem certeza que todos à sua volta irão ter nojo, medo, vergonha ou qualquer outro sentimento e temor, quando descobrirem. Pensem em um paciente terminal. Ou em alguém que sofre algum acidente e não pode mais prover a família, o que é exatamente a situação de Gregor. Ele era caixeiro-viajante e sustentava a casa sozinho, mantendo o “pequeno luxo” da família após o pai perder muito dinheiro em uma crise que ocorre tempos antes de a história começar. Também podemos interpretar a obra através de condições, pulsões e sentimentos que não são socialmente bem vistos, como questões de gênero, expressão ou sexualidade… E dentro de toda essa riqueza de visões que o livro possibilita ver, temos a oportunidade de acompanhar não apenas a transformação de Gregor, mas como ela afeta a família e o que eles fazem diante dessa nova situação. Não temos apenas a metamorfose de uma pessoa, mas da família inteira, cada um a seu modo. E no meio de todas essas mudanças, uma das mais assustadoras, além da de Gregor, é o de sua irmã Greta (ou Grete).

Delicada violinista e tratada como um mimo da família, Grete inicialmente é quem auxilia o irmão em sua nova condição. Ela se mostra preocupada, testa diversos tipos de alimento até que encontra aquele que Gregor mais gosta agora, limpa o quarto… Aos poucos, porém, vemos Greta se tornar cada vez mais distante e impaciente, situação que tem o seu ápice quando ela começa a trabalhar para ajudar no orçamento da casa. O final do livro é um dos mais cruéis, levando em consideração esse nível de transformação, trazendo-nos uma dolorosa ideia de “desumanização” ou de “banalização do horror” para uma ação que temos aos montes em nossa realidade, onde pessoas desejam a morte de alguém que está doente ou de qualquer pessoa que acham que está “atrapalhando” a vida delas, questionando, inclusive, se o indivíduo em discussão é mesmo humano e merece ser tratado como tal.

No início da metamorfose, Gregor já tinha mostrado que também era um viciado em trabalho, bastante zeloso de suas encomendas e pelo que a empresa representava para ele. Apesar de odiar as ações do chefe, aguentava tudo porque tinha grandes planos financeiros a médio prazo. Como pagamento moral, ao se dar conta de que Gregor não vai trabalhar, o chefe manda o gerente da empresa visitar a casa dos Samsa e apontar que Gregor estava atrapalhando a empresa. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência, tampouco dentro da obra do próprio Kafka, que sempre criticou e ironizou o mercado de trabalho, os sonhos que ele vende e como ele usa e desumaniza o indivíduo.

Meu único impasse com a obra é o final. Por mais condescendente que eu seja com a ideia de “vida que segue” e tenha plena noção do conceito dramático para aquilo que a família pensava e o alívio que tiveram naquele final, essa quebra e a colocação de “novos sonhos” e de “novo começo” me parecem completamente artificiais na narrativa. O próprio autor desgostava do final, então meu impasse aí não é a invenção da roda em termos de crítica negativa a uma parte do volume. Até os diálogos parecem vindos de um outro cenário, de um outro livro. Desaparece por completo o clima de opressão e a tal “nova realidade” parece dominar agora todos os aspectos da família. O problema é que ela vem abruptamente e a despeito da nossa boa vontade para compreender isso como um “alívio de fardo” para o trio Samsa, é impossível dissociar essa leveza absurdamente rápida com o tom de todo o restante do livro. É mudança demais em tempo de menos e sem uma real necessidade, já que a obra seria bem melhor se tivesse terminado algumas páginas antes.

Cruel, aberto a diversas leituras, e influência de uma grande geração de artistas e centenas de obras futuras, A Metamorfose é um livro que se lê de uma tacada só, porque é uma leitura fácil, especialmente do meio para o final. Um livro que já mostrava os tormentos do homem do início do século XX e que, com o passar do tempo, se metamorfoseou também para situações que acompanham o passar dos anos, o avanço da tecnologia e a massacrante impressão de que toda a sorte de “insetos monstruosos”, no bom e no mal sentido, dominam cada vez mais o mundo que a gente vive. O adjetivo kafkiano não poeria ser mais propício.

A Metamorfose (Die Verwandlung) — Alemanha, República Tcheca, 1915 (escrito em 1912)
Autor: Franz Kafka
Tradução: Modesto Carone
No Brasil: Companhia das Letras, 2000
102 páginas

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