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Crítica | A Montanha Matterhorn

por Luiz Santiago
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A primeira coisa que ouvimos em A Montanha Matterhorn é a ária Erbarme dich, mein Gott, da inominável Paixão Segundo S. Mateus, de Bach. É muito importante que se tenha isso em mente ao falar do filme, porque é em torno da obra e atmosfera bachianas que Fred, um dos personagens principais, será desenvolvido: seu filho se chama Johan; ele só tem discos de Bach em casa e a belíssima ária citada acima é uma espécie de hino ao seu passado, cantado por Johan aos oito anos de idade, num tempo em que a família ainda estava completa, antes da morte de Trudy. Esse espírito sacro também alude ao ambiente religioso da pequena cidade onde Fred vive, uma característica marcante que servirá de contraste para a quebra da rotina extremamente metódica do local (e do personagem), com a chegada do misterioso Theo.

A construção visual do filme é bastante cuidadosa desde o início, acompanhando momentos do dia de Fred, seu cômico apreço por horários rígidos de café da manhã e jantar, sua obsessão por Bach e vida de homem religioso e recluso, uma visão que o público nutre sobre o personagem durante algum tempo, mas que aos poucos é modificada.

Ainda na fase inicial do filme, uma figura misteriosa aparece, um homem que servirá de quebra dramática para o roteiro e redefinição – e essa palavra foi usada com seu sentido mais verdadeiro possível – de Fred e mais adiante, de um vizinho seu. As aparências na verdade é que são derrubadas e o convívio vai ser tornando em algo que é impossível definir em poucas palavras.

Ao fazer o papel de bom samaritano, abrigando Theo em sua casa, Fred não esperava que acabaria se afeiçoando a ele – não pense nisso como um afeto sexual – e aos poucos, a presença do estanho e silencioso homem passa a ser necessária para o tão regrado religioso. A história tem cara de improvável nesse início, mas após a explicação de quem na verdade é Theo e porque ele age daquele jeito, entendemos a escolha do texto e o por que a personagem foi concebida daquela forma. Ele parece, na verdade, a encarnação de um Tati holandês, valendo-se das ações físicas e tempo certo de destaque no roteiro (que nesse sentido é milimetricamente decupado)  para agir em cena.

Alguns pequenos focos narrativos são formados, e para um espectador mais desatento, o filme parece não seguir uma linha ou ter um objetivo final. Todavia, se atentarmos para as indicações desde o início, veremos que existe um forte tom cronista na obra, de modo que é normal haver destaques momentâneos para cenas ou lugares que acrescentarão às personagens ou ao seu relacionamento algo novo.

Num caminho diferente do que normalmente vemos em filmes sobre pessoas que tem suas vidas mudadas por alguma coisa, não temos aqui alterações fotográficas grandiosas ou mudanças na direção de arte. É claro que a variação de ambientes cumpre bem esse papel, mas são os elementos externos que vemos se alterar constantemente, ao passo que o interior da casa de Fred continua o mesmo, aquela madeira escura, com cortinas na janela e Bach no rádio. Só que a despeito dessa estagnação, o personagem é completamente outra pessoa. Ele vai de um ponto a outro no comportamento cotidiano em sua cidade, abrigando Theo e fazendo com ele coisas que os deixavam felizes. Até o revés que aparece na parte final da obra intensifica essa questão, e não parece colocado de maneira clichê como normalmente vemos. A volta de Theo à casa de Fred – e principalmente o modo como isso acontece – é pleno de verossimilhança e muito bem filmado.

Diederik Ebbinge, que além de dirigir o filme, escreveu o roteiro, usa com competência o seu tempo, e em 1h30 entrega um filme bonito, com histórias que amadurecem e se resolvem ao final, uma série de aprendizados e aceitação do novo ou do insólito. A relação de Fred com seu filho Johan é um exemplo disso. Ambos romperam, num certo momento da vida, mas o encadeamento das coisas na vida de Fred o fará repensar sua posição frente a seu filho e ir atrás dele.

A Montanha Matterhorn é quase uma versão do imperativo categórico de Kant, uma versão trabalhada num mundo social conservador e religioso tendo em pauta a complexa definição de uma forte relação afetiva (não sexual) entre dois homens – jogando para longe os maniqueísmos ou reducionismos que muitas vezes um tipo de relação assim colocaria. E tudo isso com diálogos e momentos escritos e mostrados na medida certa, através de uma admirável montagem e bela trilha sonora. Não tem como não sair da sessão com um largo sorriso no rosto.

A Montanha Matterhorn (Matterhorn) – Países Baixos, 2013
Direção: Diederik Ebbinge
Roteiro: David Garrick e Colley Cibber (alterações textuais da peça de William Shakespeare).
Elenco: René van ‘t Hof, Ton Kas, Ko Aerts, Kees Alberts, Lucas Dijker, Porgy Franssen, Alex Klaasen, Elise Schaap, Ariane SchluterSieger Sloot
Duração: 87 min.

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