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Crítica | A Noviça Rebelde

por Ritter Fan
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Let’s start at the very beginning
A very good place to start
When you read you begin with A-B-C
When you sing you begin with do-re-mi

Um dos aspectos mais cativantes de A Noviça Rebelde é o fato – que relativamente poucos conhecem, na verdade – que a história é baseada no que realmente aconteceu com a família von Trapp no início da Segunda Guerra Mundial. E não é só a história em si, mas também o fato de a família ser, efetivamente, formada de cantores amadores que viriam a compor o grupo The Trapp Family Singers, famoso tanto na Europa quanto, depois, nos Estados Unidos.

Evidente que o que vemos nesse clássico é uma versão fortemente alterada da verdadeira história da família. Muito do que se passa não aconteceu e, do que aconteceu, quase tudo foi alterado de maneira a servir a uma narrativa fluida e engajante como claramente é o resultado final do trabalho de Robert Wise. Mas o conceito, o pano de fundo por trás dessa belíssima história familiar está todo lá: uma noviça vai cuidar dos filhos de um aristocrata austríaco logo antes da guerra, se apaixona pelos filhos e pelo patriarca, eles se tornam cantores e saem da Áustria juntos, pois o patriarca, um oficial da marinha, não concorda com a anexação da Áustria pela Alemanha nazista (conhecido como Anschluss e ocorrido em 1938). Um conto de fadas que aconteceu de verdade.

E o filme, baseado na verdade no musical da Broadway escrito por Howard Lindsay e Russel Crouse e que estreou em Nova York em 1959 (por sua vez inspirado no filme alemão A Família Trapp, de 1956), é um conto de fadas do começo ao fim, que não deixa nem mesmo de ter sua lição de moral (mais de uma, na verdade) e todos os elementos necessários para o sucesso que amealhou quase que instantaneamente. Sem dúvida alguma que as músicas compostas pela lendária dupla Rodgers e Hammerstein (em sua última colaboração, na verdade, pois Oscar Hammerstein viria a falecer meses após a estreia da peça), quase que totalmente transpostas para o filme, foram chave para a aceitação mundial do musical de Wise. No entanto,  A Noviça Rebelde consegue ser mais do que suas músicas, graças a  uma escalação de elenco quase inacreditável, uma fotografia estonteante feita em locação em Salzburgo, na Áustria e uma montagem dinâmica que acrescentou muita energia às canções do musical da Broadway.

Julie Andrews foi literalmente a única escolha tanto de Wise quanto de Ernest Lehman (roteirista que começou a trabalhar no filme ainda em 1962, antes de Wise embarcar e que, junto com Wise, fizera Amor, Sublime Amor). Mary Poppins não havia sido lançado ainda nos cinemas quando os dois, depois de assistirem a trechos do filme de Robert Stevenson, não tiveram dúvida em contratá-la imediatamente. Um acerto e tanto, pois Andrews reunia todas as características necessárias para uma Maria von Trapp cinematográfica: beleza, jovialidade, personalidade cativante, uma grande latitude de atuação e, claro, uma poderosa voz. Seu papel é tão icônico que até hoje é seu trabalho mais lembrado e sua presença durante a projeção é tão arrebatadora que, mesmo cercada das crianças von Trapp ou de outros personagens, como na sequência do baile, ela rouba as cenas e naturalmente atrai a atenção do espectador.

E Wise sabia desse potencial e o explorou ao máximo na película. Maria é, merecidamente, o foco de sua câmera, com um fotografia vibrante em 70 mm Todd-AO e DeLuxe Color por Ted D. McCord, que já ganhara o Oscar em sua categoria duas vezes antes – por Belinda, de 1948 e Dois na Gangorra, de 1962 – e que viria a ganhar novamente por A Noviça Rebelde. As cores naturais realçam a beleza das locações, mas a fotografia não perde de vista os personagens, integrando-os a seu ambiente de maneira a criar uma simbiose entre cenário e atores. A sequência inicial, sem música, com uma tomada aérea dos alpes austríacos que vagarosamente nos joga no entusiástico passeio de Maria von Trapp é antológica, mesmo que Wise e Lehman tenha basicamente repetido o início de Amor, Sublime Amor. É logo aí, nesses minutos iniciais, que a integração personagem-cenário e a grande atenção dada a Julie Andrews ficam marcadas. Afinal, a exuberância do que vemos é perfeitamente mesclada com o poder da voz de Andrews cantando a inesquecível música título.

Edelweiss, Edelweiss
Every morning you greet me
Small and white clean and bright
You look happy to meet me
Blossom of snow may you bloom and grow
Bloom and grow forever
Edelweiss,Edelweiss
Bless my homeland forever.

Mas a onipresença de Julie Andrews às vezes permite que o espectador desfrute também dos demais atores. As crianças (curiosidade: Nicholas Hammond, que faz Friedrich, o menino mais velho, viria a ser o primeiro Peter Parker de carne e osso, na série de TV setentista do Homem-Aranha) todas funcionam muito bem, com a sábia decisão de Wise e Lehman em só efetivamente focar em uma delas, Liesl (Charmian Carr), a mais velha e seu namoro com o carteiro-que-se-torna-nazista Rolfe (Daniel Truhitte). Mesmo sem esse foco individual, cada criança traz sua personalidade para a obra, especialmente na memorável sequência em que, de maneira militar, eles se apresentam à estupefata Maria.

Christopher Plummer é, talvez, a personificação do galã altivo, belo e encantador. Seu Capitão von Trapp transita muito bem entre a seriedade de seu passado militar e a ternura da descoberta de um novo amor. E, mesmo não sendo nem de longe um cantor tão bom quanto Andrews, seus dois momentos solo cantando Edelweiss são emocionantes.

Os coadjuvantes Eleanor Parker como a Baronesa Elsa Schraeder, noiva do Capitão e Richard Haydn, como o empresário Max Detweiler também merecem cumprimentos, mesmo que seus papeis não sejam “cantantes” e que não façam muito mais do que pontas. É que eles emprestam, respectivamente, um pouco de “vilania” fora do eixo nazista à história – a Baronesa, afinal, compete com Maria pelo amor do Capitão – e de alívio cômico, em atuações em perfeita sintonia com o ambiente ao seu redor.

Mas é lógico que jamais poderia deixar de falar de Peggy Wood no papel da Reverenda Madre da abadia de Nonnberg, de onde vem Maria. Ela tem pouquíssimo tempo de tela, mas sua função é essencial para a narrativa (é ela quem manda Maria para ser a governanta dos von Trapp) e sua atuação carrega uma leveza e uma força que são absolutamente marcantes. Mesmo que não seja somente sua voz cantando a inspiradora Climb Ev’ry Mountain – as notas mais altas ficaram ao encargo de Margery MacKay – é impossível não se emocionar com seu trabalho.

A Noviça Rebelde encanta geração atrás de geração por trazer uma história de esperança, perseverança e inconformidade com embalagem de conto de fadas musicado que surpreende a cada canção, sem jamais ser repetitivo ou cansativo. Cada letra dos imortais compositores ganhou seu devido destaque sob as lentes precisas de Robert Wise, que soube ampliar o efeito de músicas enganosamente simples, como Do-Re-Mi ao retirá-la da formatação estanque da peça teatral e transformá-la em um passeio turístico por Salzburgo. Transformou Edelweiss em um hino anti-nazista com duas performances tocantes de Plummer. Divertiu plateias com as ótimas My Favorite Things, So Long, Farewell e Maria e as fez ficar emocionadas com Climb Ev’ry Mountain e Sixteen Going on Seventeen.

Literalmente só tenho como encerrar com um entusiástico muito obrigado a Robert Wise, Ernest Lehman e Julie Andrews por criarem algo tão inesquecível e atemporal como A Noviça Rebelde.

Climb ev’ry mountain
Ford ev’ry stream
Follow ev’ry rainbow
‘Till you find your dream

A Noviça Rebelde (The Sound of Music, EUA – 1965)
Direção: Robert Wise
Roteiro: Ernest Lehman (baseado na biografia escrita por Maria von Trapp e no musical teatral escrito por Howard Lindsay e Russel Crouse)
Elenco: Julie Andrews, Christopher Plummer, Eleanor Parker, Richard Haydn, Peggy Wood, Charmian Carr, Heather Menzies-Urich, Nicholas Hammond, Duane Chase, Angela Cartwright, Debbie Turner, Kym Karath, Anna Lee, Portia Nelson, Ben Wright, Daniel Truhitte, Norma Varden
Duração: 174 min.

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