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Crítica | A Origem do Segundo Flash (Showcase #4, 1956)

por Giba Hoffmann
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Meados dos anos 1950. Estrangulados pela perseguição e censura, os quadrinhos encontravam-se em um momento de reinvenção profunda onde o resgate dos baqueados super-heróis aparecia como possibilidade promissora, uma vez que os grandes sucessos de faroeste e terror se encontravam basicamente impossibilitados de continuar existindo frente às duras regulamentações impostas pelo famigerado Comics Code. É buscando driblar tais limitações que os resilientes Batman e Superman passaram a encaminhar-se cada vez mais para aventuras estapafúrdias onde as cenas de investigação, perseguição e confrontos fantásticos davam lugar a “mistérios” chamativos que tentavam aguçar a curiosidade do leitor com premissas improváveis (dando origem às hilárias capas retratando situações completamente absurdas), tendência que continuaria a tomar conta das histórias da DC por um bom tempo.

Mas nem apenas de Superman realizando o matrimônio entre Jimmy Olsen e um chimpanzé viveu a Era de Prata da DC Comics. O renascimento do gênero de super-heróis se deu de forma lenta e gradual e é certo que, para que um dia ocorresse a bombástica estreia do Quarteto Fantástico, foram imprescindíveis as reimaginações do Flash e do Lanterna Verde, sob a batuta do visionário editor Julius Schwartz, valendo-se do talento de roteiristas já veteranos como Robert Kanigher, John Broome e Gardner Fox. Não é por menos que muitos dos historiadores da nona arte apontam para Showcase #4 como o marco inicial da Era de Prata dos quadrinhos. Apesar de ser um desafio eleger uma única edição como ponto divisor de águas dessa magnitude, é certo que encontramos nas duas histórias do Flash que compõem o número algumas das características mais comumente associadas à época: o tom otimista e as tramas de ficção científica amarradas por uma inspiradora tendência à hipérbole. Neste contexto é que somos introduzidos ao jovem cientista forense Barry Allen, na história seminal Mistério do Relâmpago Humano.

Algo que chama a atenção aqui, em comparação a outras estreias de super-heróis, é a maneira como o novo Flash nos é apresentado de forma relativamente bem-acabada. A forma como o personagem já nos chega de certa forma “pronto” é indicativa de que, por trás do que poderia parecer apenas mais uma digressão do enfraquecido gênero de super-heróis da década de 1950, escondia-se na verdade um primeiro passo importantíssimo rumo à grandiosidade que os cruzadores de capa viriam a reconquistar em breve.  O conceito central do personagem conforme aparece aqui será mantido por boa parte de sua trajetória, com vários dos seus pontos característicos debutando simultaneamente ao longo das duas histórias que compõem a edição: Central City, o uniforme escondido no anel, Iris West em perigo, supervelocidade distorcendo todas as leis possíveis da física, viagem no tempo e supervilões absurdos e inusitados. Robert Kanigher e John Broome pareciam saber exatamente o que faziam, algo que nos fica sugerido logo na primeira cena.

No primeiro vislumbre que temos de Barry Allen, o futuro herói lê um quadrinho de ninguém menos que…o Flash! Fascinado pelo heroísmo de Jay Garrick, que nesta terra aparentemente não passa de um personagem de ficção, Barry se pergunta como seria ter poderes de velocidade supersônica e usá-los para lutar contra o crime. Minutos depois do devaneio, um relâmpago atinge a prateleira cheia de produtos químicos, e o fantástico se torna real. A cena não apenas é uma forma bastante engenhosa de simbolicamente passar a tocha do desaparecido-das-bancas Jay Garrick para o segundo Flash, como também sugere um planejamento por antecedência o qual muito provavelmente a produção não merece, mas que ainda assim planta as sementes para a bombástica história O Flash de Dois Mundos.

Embora o evento que concede a Barry o dom da supervelocidade seja praticamente uma recriação da origem do primeiro Flash, com os produtos químicos indo ao chão e tudo mais, um diferencial aqui é que o ocorrido não se dá pela simples desatenção do cientista como no caso anterior, mas sim com um relâmpago atingindo em cheio a prateleira. A inserção parece cumprir o papel de tornar o incidente uma situação ainda mais incomum e, dessa forma, enraizar a origem deste novo Flash em uma perspectiva mais “científica”. Porém, ao mesmo tempo, é interessante como a figura do relâmpago, já muito presente no visual e na narrativa das aventuras de Jay Garrick aparece aqui como diretamente participante na criação do novo meta-humano. Ou seja, se por um lado é fato que, em termos de gênero, essa nova versão do herói tenderá muito mais à ficção científica do que à ação urbana e ao heroísmo de guerra do Flash original, por outro lado é interessante reconhecer que algo se mantém da imagética mística da versão original do personagem. Enquanto que Jay Garrick sustentava um visual que misturava mais diretamente o urbano com o divino (camiseta e calças jeans, com o capacete e botas de Hermes/Mercúrio), o visual de Barry com o macacão miniaturizável de corpo inteiro remete a uma apropriação mais tecnológica do conceito, mas sem deixar de lado a simbólica do relâmpago e das asas de Hermes/Mercúrio nos pés e na cabeça, ainda que minimizadas. Esse enfoque é especialmente interessante se pensarmos no papel que a Força de Aceleração terá, décadas depois, na explicação da origem não apenas dos diferentes heróis a usar o manto do Flash, mas de todos os velocistas do Universo DC.

Cabe ainda ressaltar que o sucesso de “Mistério do Relâmpago Humano” não se resume às sementes plantadas para o futuro desenvolvimento do personagem. O ritmo da narrativa de Kanigher é bastante acelerado (sem trocadilhos), cativando o leitor e com o bônus de não tropeçar nas paredes de texto de um quadrinho de Stan Lee, por exemplo, algo que viria a ser uma marca do estilo da época mas que aqui ainda é felizmente evitada em favor de uma narrativa mais visual. E a confiança no lápis de Carmine Infantino é certamente recompensada, com cenas dinâmicas, quadros largos e ângulos de desenho que fazem o quadrinho parecer literalmente a frente de seu tempo.

Um bom exemplo é a cena no restaurante onde uma garçonete, de forma típica, derruba uma bandeja cheia de comidas e bebidas, apenas para Barry apanhar tudo de volta em uma fração de segundo antes que fossem ao chão, situação que tornou-se um lugar-comum para a apresentação de superpoderes, especialmente no início dos anos 2000 com a moda das técnicas de bullet time. Com um de seus usos mais icônicos sendo no primeiro Homem-Aranha de Sam Raimi, somos levados a pensar que um momento como esse é praticamente ausente na própria origem do herói aracnídeo (onde ele amassa uns canos e escala algumas paredes enquanto recita toneladas de falas expositivas para si mesmo). Por outro lado, para levar mais a frente o comparativo, é certo que o cabeça-de-teia recebe uma das melhores origens de super-heróis de todos os tempos, muito disso se devendo a sua riqueza temática em torno do poder, responsabilidade e culpa. Nesse ponto é que podemos  observar que Barry se encontra ainda bastante ancorado na Era de Ouro, já que nada disso se faz presente aqui, o próprio fato de receber tamanho dom é tratado de forma absolutamente trivial pelo personagem, sem que haja nenhuma exploração no sentido de nuançar o personagem para além do heroísmo. Neste sentido é que a história inicia uma revolução, mas se mantém ainda próxima a certas tradições, seguindo a própria tendência da editora em relação à tonalidade de suas histórias de super-heróis, que demorariam a explorar o lado mais humano de seus metas.

A primeira aparição de Iris West, literalmente com uma bala  rumando direto para sua cabeça, nos faz pensar sobre a extrema má-sorte da moça, que a acompanharia pelo resto de sua trajetória. Em compensação, sorte para o mundo que Barry Allen, ao invés de se abalar com o fato de ser atingido por um relâmpago e no dia seguinte ter a namorada quase morta em sua frente, une as duas situações com a inspiração do heroico Jay Garrick e decide assumir o manto do Flash. A relação de Iris com Barry segue o clássico arquétipo de Lois Lane, fazendo pouco caso gratuito da identidade civil ao mesmo em que endeusa o herói, sem jamais suspeitar se tratarem da mesma pessoa. Embora seja uma fórmula que facilite a repetitividade dos roteiros, a piada recorrente recebe aqui ares especialmente interessantes pelo fato de Barry estar sempre atrasado (o que será cada vez mais compreensível, conforme ele tiver que lidar frequentemente com gorilas sencientes e ameaças transtemporais), o que lhe rende o rótulo (bastante irônico) de lerdo.

Após Barry salvar Iris e decidir se tornar o Flash, temos então um salto no tempo onde nada é muito bem explicado, e daí para frente acompanhamos a primeira aventura do herói, enfrentando… o Tartaruga. Não há muito a ser dito a respeito do vilão, exceto pelo óbvio que a pergunta contida na splash-page já nos faz antecipar. “O que acontece com o homem mais rápido do mundo quando ele enfrenta o homem mais lento do mundo”? Bom, eu imagino que ele fica entediado pra caramba! A lentidão do Tartaruga é explorada aqui não como um superpoder ligado à distorção do tempo ou da velocidade. Ele simplesmente… é lento. E isso parece lhe conceder algum nível de planejamento que faz com que ele pense vários passos à frente, algo como um misto entre os vilões Tartaruga e Pensador de Jay Garrick, ou ainda, como o Pensador Louco do Quarteto Fantástico.

O conceito está longe de ser desinteressante: enfrentar o Flash com um plano tão ardiloso que é capaz de fazer sua supervelocidade ficar para trás apenas através do engodo e da confusão mental frente às situações previstas e esquematizadas. Porém a execução aqui exagera demais no nonsense. Após um assalto inexplicável ao banco e uma perseguição pelo esgoto que termina em um rio, Flash persegue o vilão correndo sobre a água (mais um feito impressionante muito bem retratado pela arte de Infantino). Aparentemente tendo contado com isso, o Tartaruga explica que as próprias vibrações dos passos do Flash fariam o barco estar sempre afastado o suficiente dele, de modo que ele nunca o alcançaria (?). A resolução é simples: Flash dá várias voltas em círculo em torno do barco, e a prisão do Tartaruga, primeiro inimigo derrotado pelo herói nas páginas, se dá com ares de overkill. Uma primeira aventura que parte de um bom conceito, mas com uma execução apressada e mal explicada que acaba soando um tanto anti-climática após a bela introdução do protagonista.

Temos ainda uma segunda aventura na mesma edição, desta vez escrita por John Broome, roteirista que assumiria sozinho as aventuras do Flash poucos meses depois. E, bem… 20 páginas. Esse foi o tempo máximo entre a introdução de Barry Allen e sua primeira quebra da barreira do tempo. Assim é que, ao final de O Homem que Quebrou a Barreira do Tempo, presenciamos este outro marco contido ainda nessa edição inicial. A aventura gira em torno da vinda de Mazdan, criminoso vindo do futuro que, armado com bugigangas futurísticas resolve… assaltar um banco. OK, não é como se o Tartaruga tivesse patenteado a ideia…

Em um ponto indeterminado do futuro, o “ladrão incorrigível” Mazdan é condenado por seus aparentemente inúmeros crimes. Sua sentença? Ser enviado para o século L, onde a Terra aparentemente já irá ter se tornado um planeta desolado e sem vida. OK, isso levanta inúmeras questões. Esses humanos do futuro sabem do iminente fim da Terra e qual sua ideia de ação à respeito? “Vamos usar pra jogar a bandidagem lá então!” Sério mesmo? Quero dizer, isso cria uma complicação, já que todo esforço de tentar impedir a destruição da vida no planeta terá que levar em conta que em determinado momento começarão a chover cápsulas com os piores criminosos da história, cortesia da burrice das gerações passadas. Por outro lado, dá pra se pensar que os cientistas do futuro previram uma destruição irremediável, e assim provavelmente concentraram esforços em abandonar o planeta em arcas rumo ao espaço… Mas, mesmo que seja assim, qual é a diferença entre mandar o meliante para esse futuro teoricamente desolado e não simplesmente condená-lo à morte? É certo que um ponto contra a ideia é o fato de que, na sentença de morte, não existe a possibilidade de que acidentalmente a cápsula do tempo engate a marcha à ré e rume para o passado, potencialmente destruindo a linha temporal como nós a conhecemos.

De todos os elementos de ficção científica levantados pela curta história, os procedimentos duvidosos da sociedade de onde provém Mazdan são o mais interessante. Infelizmente a aventura do velocista escarlate não explora nenhum deles, e sua primeira viagem temporal acaba por se revelar bastante monótona, cumprindo a tarefa apenas de levar Mazdan de volta para seu tempo de origem. O criminoso também não apresenta nenhuma ameaça mais interessante do que de qualquer outro ladrão de bancos da época, equipado com parafernalhas como arma de calor e lentes de contato especiais para fugir da prisão. Nenhuma das habilidades de Mazdan chega perto de apresentar algum desafio frente à supervelocidade do Flash, e a coisa toda acaba se tornando uma perseguição típica entre mocinho e bandido. Assim, a estreia de Broome nos roteiros não empolga tanto quanto a primeira história, servindo o propósito de apenas reafirmar o estilo do herói debutante nessa primeira edição, mas sem fugir suficientemente do óbvio.

Ainda assim a história voa nos traços de Infantino, ao mesmo tempo em que observamos os elementos de ficção científica já sugeridos de forma mais incisiva, o que faz com que a peça acabe por ser um bom complemento nessa edição de importantes estreias. Showcase #4 se apresenta como uma boa leitura para além do óbvio fator histórico, com duas aventuras rápidas e fluídas do herói estreante. Atualizando a temática super heróica rumo a uma sensibilidade mais sessentista, a origem de Barry Allen como o Flash é realizada de forma confiante e envolvente no roteiro de Kanigher e, especialmente, nos traços de Infantino.

Showcase v1 #4 (EUA, outubro de 1956)
Roteiro: Robert Kanigher, John Broome
Arte: Carmine Infantino, Joe Kubert
Capa: Carmine Infantino, Joe Kubert
Editora: DC Comics
Editoria: Julius Schwartz
22 páginas

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