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Crítica | A Paixão de Ana

por Luiz Santiago
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As filmagens de A Paixão de Ana (1969) duraram 45 dias e foram marcadas por inúmeros contratempos, todos previamente imaginados pelo diretor e roteirista Ingmar Bergman, que tentou jogar com o improviso em algumas cenas, e com a ocorrência de eventualidades, já que a história exigia esse tipo de composição com menos controle a fim de dar o tom do despedaçamento dos protagonistas fracassados, em um mundo onde tudo pode acontecer. A obra começa com o personagem de Max von Sydow (Andreas) tentando arrumar o telhado de sua casa na ilha. Ele é um homem isolado a quem a sorte parece não visitar. Sua prisão não muito distante e o fim de seu casamento o colocaram em uma situação complicada para trabalho e para apreciação pessoal. E como se não bastasse, ele contempla, logo no início do filme, um crepúsculo marcado por um parélio, fenômeno celeste que possui um antigo simbolismo de “má sorte” ou “prenúncio de desgraça”.

Levando em conta o duplo significado de “paixão” no filme, algo entre o prazer e o sofrimento, o roteiro de Bergman segue por algo que ele chamou de “uma sequência virtual” do filme Vergonha, do qual vemos um pedaço de cena reproduzida aqui, em um sonho em preto e branco de Anna Fromm, a personagem da excelente Liv Ullmann. No meio de tudo isso, uma tensão latente esteve durante todo o tempo nos sets, pois este filme aconteceu no momento em que o relacionamento entre Ullmann e Bergman estava acabando, condição que tornava parte dos assuntos do roteiro ainda mais pessoais e profundamente íntimas para atriz e diretor.

De um lado, o enredo traz a violência tomando o cotidiano de pessoas simples, temática já trabalhada pelo cineasta em A Hora do Lobo e Vergonha, fazendo desta terceira entrada, a conclusão de uma estranha trilogia de ataques a personagens que parecem condenados ao horror do mundo onde vivem. O curioso é que nesses três longas existe alguma guerra em andamento, seja ela psicológica/espiritual, seja ela física/política. Em comparação ao conflito civil de Vergonha, temos em A Paixão de Ana um distanciamento temporário, mas não total. Até algumas composições de quadros são as mesmas, e o fato de ambos os filmes terem sido rodados nas ilhas Fårö ajudou imensamente nessa questão imagética. Cenas com casas pegando fogo, cenas de descontrole emocional, de sexo como um tipo de expurgo de dores incuráveis e tentativa de conexão com o mundo também são ingredientes presentes nas duas fitas.

O medo de uma ameaça constante e próxima (parece que o “terror da bomba” de Luz de Inverno se transformou aqui em um terror do cotidiano, de uma violência com a qual todos nós lidamos) se torna algo corriqueiro para o casal Andreas e Anna, o que não significa que eles não temem o que possa acontecer a eles. Ambos estão assustados. Mas o roteiro dá a eles uma característica que os impede de agir de modo mais ativo diante da ameaça, afinal, suas energias estão direcionadas para se verem livres (ou perdoados) de um passado que a cada dia parece mais afoito em cobrar seu preço. E nesse caminho vemos Bergman errar na constante disposição do trecho de uma carta na tela, a despedida endereçada a Anna, por seu antigo esposo, uma mostra desnecessária desde o início, mas que se torna irritante e amadora à medida que a obra avança.

Particularmente gosto mito das interferências metalinguísticas do diretor, mas não consegui me conectar com as que ele fez aqui, não quando olho para a obra como um produto fechado. Isoladamente, gosto dos depoimentos, quebrando uma parede de análise de personagens pela sua máxima exposição — e máxima exposição de personagens é o que há neste filme –, mas, contextualizados, esses momentos entram de tal modo na fita que não me parecem um ato realmente orgânico. Da primeira vez que assisti ao filme, eu havia gostado muito dessas interferências, agora, porém, penso que a obra passaria melhor sem elas, embora não as classifique como ruins.

Quanto à exposição de personagens, a melhor sequência da obra — que se dá no melhor momento fotográfico de Sven Nykvist, no primeiro encontro a sós de Andreas e Eva (Bibi Andersson) — é, na verdade, um perfeito resumo para o que acontece com os indivíduos em todo o longa. Eles estão sujeitos a se apegarem ao primeiro suspiro de felicidade que lhes aparece, porque não sabem se terão mais qualquer coisa parecida. A sequência é verdadeiramente profunda, além de dirigida com primazia, mostrado como todos os indivíduos, do mais blasé (Erland Josephson) ao mais perturbado (Liv Ullmann) podem cair vítimas de suas paixões, mesmo que se arrependam disso muito rapidamente.

É isso que faz de A Paixão de Ana um filme forte, no plano psíquico, físico, sentimental e emocional. Os personagens estão à beira de algum precipício dessas ordens e podem cair nele a qualquer momento. Já Andreas é o único que parece pré-condenado à desintegração, a cair no abismo. O filme começou com ele encarando um parélio e o preço parece ser cobrado sem piedade ao fim da fita. Ele se dissolve na paisagem, como se não tivesse importância alguma para ninguém. Sozinho, o que lhe resta é a agonia de estar perdido e realmente não saber para onde ir. O ponto onde os dos significados da paixão (cujo núcleo foi Anna), se cruzam. O momento em que o personagem que realmente se dispôs a mudar, é engolido pela tempestade dos dias.

A Paixão de Ana (En passion) — Suécia, 1969
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Ingmar Bergman
Elenco: Max von Sydow, Liv Ullmann, Bibi Andersson, Erland Josephson, Erik Hell, Sigge Fürst, Britta Brunius, Lars-Owe Carlberg, Malin Ek, Barbro Hiort af Ornäs, Svea Holst, Marianne Karlbeck, Annicka Kronberg, Hjördis Petterson, Brian Wikström, Brita Öberg
Duração: 101 min.

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