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Crítica | A Primeira Noite de Crime

por Gabriel Carvalho
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“Cidadãos, essa será a tradição que celebraremos todo ano. Juntem-se ao Expurgo.”

A Primeira Noite de Crime é o primeiro passo da franquia com algum traço de inteligência sobre sua própria criação, particularmente genérica, acompanhando personagens prestes a serem assassinados, enquanto doze horas em que todos os crimes tornam-se legais são paulatinamente sobrevividas, em um estado de degradação gradual da natureza humana. Cenários distópicos como esse, presentes, por exemplo, em Jogos Vorazes, possuem tal argumentação sádica, porém, curiosamente, também lúdica, inserida em diversos videojogos – em seus modos battle royale, por exemplo. Acompanhar um cinema como esse, sobre a violência em uma forma completamente caótica, é empolgante para o público, querendo adrenalina, o sentimento de sobrevivência, de perigo. Jogando essa dissertação para a apresentação sobre a obra, também temos o ser humano que anseia pelo expurgo, que anseia pela liberdade das amarras morais, exemplificado no personagem Skeletor (Rotimi Paul). Será que todos os homens são assim? Os jogadores de jogos de tiro são invariavelmente violentos? O experimento, encaminhado pelo governo atual dessa realidade paralela, acontecerá em Staten Island e, aparentemente, os idealizadores dele, homens distantes das zonas de conflito, acreditam que sim. O ser humano, presumidamente, quer se libertar.

A grande genialidade de A Primeira Noite de Crime é desconstruir, ao menos teoricamente, o seguinte pensamento, diferentemente das incursões anteriores, brincando, naqueles casos, com essa ideia estúpida da maneira mais estúpida possível. As pessoas não matam as outras, majoritariamente, porque assassinato é crime, mas porque matar, em nossas fundamentações morais e éticas, é errado. Quando o espectador percebe o caráter ilógico de uma premissa retardada do tipo, baseando-se em preceitos sociais desinteressados no real entendimento de anarquia, a obra desmorona. Os seres humanos podem ficar loucos, de fato, perder a razão e tornarem-se outra coisa que não humana, mas uma mudança coletiva, desta nossa esfera para uma esfera animalesca, é incompreensível. A narrativa, portanto, usa essa desconstrução muito bem, nos guiando de uma maneira mais amistosa pela trama, sem causar por causar em um âmbito inatingível simplesmente porque sim. Ao mesmo tempo, a fita decide explorar o caráter sócio-racial existente nessa tentativa do governo em “ajudar” o povo, através – por quê não – de um massacre entre as pessoas. As coisas, quando pensamos assim, funcionam fantasticamente no campo das ideais, tematicamente coexistindo e tornando a obra a única da franquia com recheio de discussão.

O longa-metragem, agora, é assinado por Gerard McMurray, enquanto James DeMonaco, diretor e roteirista dos demais filmes, permanece no roteiro. A mudança na direção, primeiramente, mostra uma maior habilidade do novo diretor em comandar a franquia. Os pontos positivos são determinados nas cenas de ação, confrontando grupos de pessoas com grupos de pessoas. Em um dos momentos, camuflados por uma neblina atmosférica, homens assassinam outros de um modo excepcionalmente bem coreografado. Já a tensão, em outros casos, é fraca, como na perseguição de um garoto pelo primeiro – e um dos únicos – psicopata que aparece nas ruas. Em uma das poucas cenas verdadeiramente boas que James DeMonaco escreve, um homem completamente maluco encontra a dupla de irmãos, composta por Nya (Lex Scott Davis) e Isaiah (Joivan Wade). Para o roteiristas, o verdadeiro perigo residente de seu texto não são os lunáticos, incompreensíveis, porém poucos, mas pessoas corrompidas por dinheiro, existentes em imensa maior quantidade. O querer expurgar logo desaparece, realçando a ingenuidade existente em um anseio como esse, assim como na ilusão em sentir-se livre, caso são, em consequência de assassinatos. A aparição das duas senhoras, porém, empurrando carrinhos de compra, nos ajudam a contra-argumentar isso, mesmo que suas presenças nunca estejam associadas com expurgos propriamente ditos.

Nos termos de caracterizações individuais, próprias a cada figura, A Primeira Noite de Crime não deseja ser um projeto sobre personagens, apesar de vacilar em querer, pontualmente, atingir sentimentalismos desnecessários. Os personagens, meramente arquétipos, estão unidos por passagens anteriores ao experimento, mas suas vontades, dentro das doze horas, são ou tornam-se, basicamente, sobreviver. O líder da gangue não quer que seu dinheiro seja roubado. A jovem manifestante permanece quieta dentro de uma igreja. Apenas o garoto possui intenções a mais, mesmo que, entretanto, elas sejam logo subvertidas, transformando-se em algo a mais – ou a menos. As pessoas são cobaias, ratos, e os organizadores do experimento são cientistas – esses são os personagens. A intervenção, comandada pelo governo, que acontece, enquanto a fita se encaminha para o final dela, por isso, não faz o menor sentido e impede a obra de realmente empolgar durante a sua conclusão, que se desenvolveria, em um espaço ideal, de um mata-mata singular para um mata-mata em equipe. A ideia não é fazer todas as pessoas se matarem indiscriminadamente? Qual o sentido deste artifício narrativo, então, senão a mera desestruturação da escada construída? O roteiro de James DeMonaco, dessa maneira, revela-se muito destoante da possível qualidade existente na premissa que conferiu existência a esse projeto, sem fazer justiça ao que McMurray imprime na direção.

As referências visuais, dentre os acertos do diretor, evidenciam uma malícia maior do cineasta, associando certos elementos com os de supremacistas brancos, apesar do filme nunca trabalhar nomes explicitamente. Assim como é mais esperta do que precisava ser em relação a isso, sem referências diretas, a obra é muito pobre na argumentação da relação entre o governo e o povo, jogando todas as cartas na mesa no meio do desenrolar narrativo. Se a revelação acontecesse no final do filme, como em um grande plot twist de intenções, o espectador estaria, ao fim da projeção, mais impactado com as descobertas. O público, com isso, não teria que aguentar uma meia-hora final de duração redundante em sua premissa boboca. Quando o protagonista da fita, porém, esgana um homem branco com uma máscara de blackface, após um plano-sequência extremamente bem filmado, o simbolismo, carro-chefe da fita, é bastante claro e, mesmo que a obra não tenha coragem – ou se ausente propositadamente -, de designar todo o experimento como racista, podemos ver ele dessa maneira justamente por ser um massacre da periferia. Um ponto está conectado ao outro e McMurray, entendendo todo o contexto que quer transportar ao público, expressa isso muito bem com símbolos. As origens racistas do expurgo permitem estarmos diante de uma obra muito mais relevante e competente que as suas antecessoras.

A Primeira Noite de Crime (The First Purge) – EUA, 2018
Direção: Gerard McMurray
Roteiro: James DeMonaco
Elenco: Y’lan Noel, Lex Scott Davis, Joivan Wade, Mugga, Lauren Vélez, Marisa Tomei, Christian Robinson, Kristen Solis, Patch Darragh, Maria Rivera, Chyna Layne, Siya, Melonie Diaz, Mo McRae, Steve Harris, Rotimi Paul, Jermel Howard, Derek Basco, D.K. Bowser, Mitchell Edwards, Ian Blackman
Duração: 97 min.

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