Home LiteraturaConto Crítica | A Saga do Bruxo Geralt de Rívia – Vol. 1: O Último Desejo, de Andrzej Sapkowski

Crítica | A Saga do Bruxo Geralt de Rívia – Vol. 1: O Último Desejo, de Andrzej Sapkowski

por Lucas Borba
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Todo formato narrativo está sujeito a ser encarado como bem ou mal sucedido, dependendo, segundo cada ponto de vista, da sua coerência com a proposta, com o objetivo da obra na qual é inserido. A narrativa episódica, por exemplo, não é incomum na literatura ou no cinema – que o digam clássicos como D. Quixote ou, apelando para um exemplo totalmente distinto, a ótima franquia animada Kiriku.

Na TV, claro, o formato não só é bem-vindo, como esperado pelo público, surpreendendo, aliás, quando parece que assistimos a um filme – ainda que se trate de uma série. Por outro lado, para o bem ou para o mal, narrativas episódicas ainda dão vida indefinida a certos programas. Mas, fora da TV, quando a narrativa episódica é bem-vinda? Bem, muitas histórias querem explorar inúmeras temáticas dentro de uma mesma trama e, com isso, não chegam a lugar algum, ou simplesmente não conseguem aprofundar nem uma coisa, nem outra, resultando num todo que vai do raso ao totalmente descartável.

Nesse sentido, se bem usada, a narrativa episódica, do individual, pode produzir um efeito geral maravilhoso. É o caso do primeiro livro dos sete que compõe A Saga do Bruxo Geralt de Rívia, intitulado O Último Desejo — no caso, o nome do último conto dos seis apresentados no volume. A série de livros, de autoria do polonês Andrzej Sapkowski, é um belo exemplo de transmídia, seja pelas dispensáveis adaptações que ganhou em longa metragem e na forma de seriado ou por suas maravilhosas expansões nos quadrinhos ou na franquia de jogos The Witcher – maravilhas que podem ser apreciadas tranquilamente mesmo por quem não tenha interagido com os livros.

Seja como for, O Último Desejo é a primeira obra a nos introduzir no universo distópico no qual vive o referido bruxo de cabelos brancos. Obra facilmente classificável como pertencente à escola do Realismo Fantástico, para a qual a linha entre bem e mal, princesa e bruxa, príncipe e sapo é, no mínimo, tênue, desenrola sua narrativa, ou narrativas, numa realidade na qual bruxos são tão enojados, rebaixados socialmente quanto as ameaças que são incumbidos de ou, mais especificamente, contratados para eliminar. Sim, no universo de Geralt, matar dragões e salvar donzelas em perigo não é nada heroico: é trabalho sujo, tarefa da escória, cujo único objetivo é preservar o bem estar da nobreza ou do cidadão de bem.

Reconhecimento, portanto, é algo que Geralt pouco recebe em sua eterna vida cigana, que se resume a transitar de cidade em cidade, de vila em vila, à procura de mais um serviço que pode custar sua vida em troca de pagamentos que, com muito jogo de cintura, apenas mantêm seu sustento. Fora querer mais grana, contudo, tampouco o próprio Geralt demonstra desejar qualquer outro tipo de reconhecimento e aqui reside uma das grandes sacadas de Sapkowski. Se o leitor sente pena por todo o perrengue e preconceito pelos quais passa o protagonista, este parece fazer pouco caso de tudo isso. Será? Acontece que todo bruxo, em tal universo, como parte de sua iniciação – com frequência, determinada pelas condições nas quais nasce -, tem que ingerir uma poção que, na teoria, o liberta de qualquer sentimento, visando assim garantir que o bruxo siga a risca o próprio código.

Assim, ao longo dos seis contos, conectados por interlúdios que relatam certa hospedagem do bruxo no templo de uma amiga sacerdotisa, vamos descobrindo, aos poucos, mais deste universo com a beleza do fantástico e as intempéries do realismo e mais sobre a natureza e, muito vagamente, sobre o passado desse personagem tão fechado e complexo em sua aparente apatia.

Seja com o primeiro conto, que cumpre perfeitamente sua esperada função de apresentar-nos a uma primeira impressão do bruxo e à sua profissão; com o segundo, no qual Geralt encontra, num palacete isolado, uma criatura humanoide que esconde um segredo; com o terceiro, convenientemente o mais intenso até então e que gera maior desconforto dos três, já que representa a metade da obra, a partir do envolvimento do bruxo com uma “femme fatale”; com o quarto, no qual o protagonista recebe a incumbência de uma rainha e cuja repercussão de seu envolvimento será da maior importância para o futuro da série; com o quinto, no qual passamos a conhecer, a começar pelo interlúdio anterior, o bem-humorado e mulherengo, poeta, tocador e cantor Jaskier, de fato talentoso e famoso na profissão, com rompantes filosóficos e de profundidade, amigo de Geralt e seu companheiro nesta aventura misteriosa, violenta e poética em certa comunidade nos confins do mundo, e que seguirá o bruxo em tantas outras; ou com o sexto e, mais uma vez, convenientemente, mais estrondoso, que relata o famigerado encontro de Geralt com uma feiticeira que, por bem ou por mal, estando ele longe ou perto de sua majestosa figura, passará a ser uma constante em sua vida.

Cada estória, além de brilhantemente escrita – voltada, mais do que nunca, para o psicológico de seus personagens, especialmente para o do superficialmente oco protagonista, sempre investindo em diálogos e acontecimentos fortes, que não poupam sucessivos tapas mesmo na cara de quem parece mais frágil, a exemplo de A Conspiração Franciscana, de John Sack -, está no lugar certo e ganham uma costura elegante, tendo-se em vista a série aparentemente já planejada na época pelo autor.

De fato, não parece à toa que o segundo livro da série, A Espada do Destino, também possua a mesma estrutura episódica. Decisão ousada e, pelo resultado, mais do que acertada de um autor desde então maduro, que parece saber, repetindo o que já escrevi em outra crítica, exatamente para onde vai e como chegar lá. Obra de introdução mais do que digna ao universo de Geralt de Rívia. Aguente firme, contudo, que ainda há muitas estórias pela frente.

A Saga do Bruxo Geralt de Rívia – Vol. 1: O Último Desejo (Ostatnie Zyczenie), Polônia – 2012
Autor: Andrzej Sapkowski
Editora no Brasil: WMF Martins Fontes
Tradução: Tomasz Barcinski
Páginas: 318

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