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Crítica | A Sereia do Mississípi

por Luiz Santiago
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Em sua segunda adaptação de uma obra de Cornell Woolrich, no ano seguinte ao lançamento de A Noiva Estava de Preto (1968), François Truffaut caiu em uma armadilha que podemos chamar de “a megalomania dos gêneros e estilos”.

Dedicando o filme a Jean Renoir – e claro, apresentando elementos do cinema deste cineasta –; voltando ao cenário e atmosferas típicas de Alfred Hitchcock e colocando muito de si mesmo na construção da história, o diretor faz em A Sereia do Mississípi um longa desencontrado, que funciona bem no início mas se torna vergonhosamente clichê e injustificável da metade para o final, ao problematizar desnecessariamente os percalços mais banais e fatais do amor após um instigante prelúdio renoirista-hitchcockiano.

As referências estão todas lá. A música de Antoine Duhamel brinca de maneira deliciosa com as icônicas partituras de Bernard Herrmann para Hitchcock (especialmente O Homem Errado, Um Corpo Que Cai e Intriga Internacional); os cenários dialogam com os de Renoir, destacando-se a enorme diferença entre a vida, o comportamento e o desenho de produção para o espaço urbano e o espaço campestre/periférico; a fotografia é mesclada com a beleza e exuberância de um e outro cineasta e, para completar, temos uma boa referência temática a Johnny Guitar (1954), cuja história marca fortemente a atmosfera da segunda parte do filme.

Com tanta base técnica e uma execução claramente autorial, não é de se espantar que o filme tropece grandiosamente e não consiga atender a todos os requisitos para o suspense –- quebrado quando o conteúdo do baú de Julie/Marion nos é revelado –- e nem para o romance, independente do caráter romântico a que estamos nos referindo. Há uma grande disparidade entre as duas abordagens e, tentando mostrar os aspectos centrais de cada uma delas, o diretor se perde e só toca a superfície de cada uma, deixando o público vidrado na tela durante os 40 minutos iniciais e dispersando-o minuto a minuto daí para frente.

O roteiro cai ainda mais quando Louis, após a via crucis emocional e financeira que o levou da ilha de Reunião para a França, reencontra-se com a mulher que lhe dera o enorme golpe, descobre a ‘verdade’ sobre o ocorrido e reata o relacionamento com ela, uma união marcada por um estranho amor de ambos os lados (com dependência e ingenuidade da parte dele) e forte caráter destrutivo. Repare que a proposta é interessante, mas ela vai se adocicando quanto mais nos aproximamos do final, a ponto de o personagem do excelente Jean-Paul Belmondo fazer declarações de amor dignas de um pequeno e chinfrim romance hollywoodiano para a personagem de Catherine Deneuve, também em excelente atuação, mas com uma personagem que simplesmente dá nos nervos do espectador, muito embora seu texto seja menos chavão que o de Belmondo.

Em termos técnicos, o único elemento realmente fraco de A Sereia do Mississípi é a montagem, mas isso em comparação à solidez dos outros componentes, dentre os quais destacamos a trilha sonora, a fotografia, a direção de arte e os belos figurinos de Yves Saint-Laurent para Catherine Deneuve.

Fracasso de público e crítica, A Sereia do Mississípi é a prova de que só de boas intenções um filme não pode ser bem feito. A ideia aqui tem sua graça e a execução formal de Truffaut funciona em partes no longa, ou melhor, funciona em uma parte do longa, mas o roteiro simplesmente coloca por água abaixo o que deveria ser um thriller inesquecível, transformando A Sereia do Mississípi em um filme do diretor que ficaríamos gratos em esquecer.

A Sereia do Mississípi (La sirène du Mississipi) – França, Itália, 1969
Direção: François Truffaut
Roteiro: François Truffaut (baseado na obra de Cornell Woolrich)
Elenco: Jean-Paul Belmondo, Catherine Deneuve, Nelly Borgeaud, Martine Ferrière, Marcel Berbert, Yves Drouhet, Michel Bouquet, Roland Thénot
Duração: 123 min.

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