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Crítica | A Via Láctea ou O Estranho Caminho de São Tiago

por Luiz Santiago
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Provavelmente o filme mais subestimado e talvez o menos visto da 2ª fase francesa de Buñuel (ao lado de Esse Obscuro Objeto do Desejo), A Via Láctea é um amálgama de elementos como razão, fé, fanatismo, fatos históricos, sexualidade e críticas à igreja que o diretor abordou em suas obras de temática religiosa durante toda a carreira. O roteiro, assinado por Buñuel e Jean-Claude Carrière, não traz uma única história ou se centra em um único motor narrativo, o que torna o filme um exercício bastante exigente. Num olhar rápido sobre a obra, poderíamos resumi-la como a história de dois peregrinos que vão para Santiago de Compostela e, no meio do caminho, assim como prevê a cartilha da peregrinação, encontram obstáculos e tentações.

Contudo, A Via Láctea não é um filme sobre peregrinos, até porque o próprio conceito é deturpado no roteiro, só para mostrar uma espécie de “decisões automáticas” de religiosos e descrentes. Um lado aceita enfrentar as maiores adversidades para encarar algo que não acredita. O outro lado ignora todas as leis que acha verdadeiras e parte para uma missão sem propósito. Esses são os perfis da dupla de peregrinos do filme. E é através deles que Buñuel e Carrière expõem o ciclo vicioso e assassino da fé ou os fins justificados pelos meios nada sutis que a Instituição Religiosa (aqui a católica, mas que pode ser qualquer uma outra) encontraram para fazer valer sua doutrina através dos tempos.

Há até uma espécie de ironia na peregrinação de Jean e Pierre, visto que o primeiro encontro deles é justamente com o diabo, que praticamente define o final da jornada. Embora caminhassem em nome da fé e do sacrifício (mesmo sem fé ou sem propósito), eles na verdade seguiam para um momento de prazer fugaz com uma prostitua que geraria os chamados “dois filhos do pecado”.

É nessa brincadeira narrativa que as metáforas e as indicações oníricas e surrealistas ganham corpo e abrilhantam o roteiro, contando com uma fotografia e figurinos estupendos. Os tempos históricos se misturam. Os peregrinos seculares que rumam para o pecado têm sua linha do tempo ligada à obediência de Cristo, ao questionamento da imaculada concepção, da transmutação do pão no Corpo, da Santíssima Trindade e da própria doutrina eclesiástica. É como se o roteiro fosse um grande novelo histórico e alguém bem malvado o fosse desenrolando, refletindo acontecimentos separados no tempo, mostrado o início sangrento para algo considerado puro e, principalmente, fazendo perguntas e exibindo teorias ou outras formas de explicar qualquer coisa além do dogma.

Particularmente não entendo a divisão da crítica (especialmente a francesa) em relação ao filme. A história mantém um equilíbrio tão grande, que não podemos dizer que o longa é de todo uma crítica, uma defesa, um deboche, um questionamento, um desprezo à religião. Na verdade, A Via Láctea é um pouco de tudo isso. É o momento mais verdadeiro de Buñuel em relação à igreja, e digo isso porque os dados apresentados no filme, embora trabalhados de maneira metafórica ou surrealista, são reais. A crônica teológica ou mesmo a Bíblia serviram de fonte para o texto, que se aproveita desses elementos para colocar no mesmo novelo-fílmico o Marquês de Sade, Jesus, Maria, os discípulos, os peregrinos, uma prostituta, um padre louco, os inquisidores, os revolucionários, o Papa, a polícia/Exército e São Pedro.

A religião e a fé são um produto da História e é só olhando para a História que o fiel vai ter ciência da origem daquilo que ele crê. Em nenhum momento Buñuel ridiculariza ou escanteia a fé. Exemplo máximo disso é a aparição de Maria para um dos “caçadores” que havia atirado em um rosário. O que o diretor faz é dissecar tudo o que foi produzido em nome da fé, na maioria das vezes, de má-fé. Já na abertura temos isso sutilmente apresentado, quando vemos a contestação do próprio Papa sobre reconhecer os restos mortais de São Tiago. Aliás, a questão da fabricação de relíquias, artefatos sagrados, milagres e afins aparece no filme como raiz da maior parte dos tempos históricos, mostrando que cada tempo e cada lugar fabricou os seus próprios demônios, milagres e símbolos santificados.

A Via Láctea ou O Estranho Caminho de São Tiago é um filme-tese de Buñuel, um amálgama de suas realizações ao longo dos anos. Se o olharmos em perspectiva, perceberemos que ele é um complemento maduro das experiências obtidas em Nazarin, O Anjo Exterminador, Viridiana ou Simão do Deserto, só para citar alguns. Mas é preciso ter um olhar além do óbvio. Caso contrário, o filme será apenas uma confusa profusão de heresias, pecados e injustiças contra a Santa Madre Igreja, atitudes que (alguém certamente dirá) serão fatalmente julgadas pelo Deus do Amor. Quer prova maior de que fé, doutrina e Instituição + hierarquias não combinam? As contradições saltam aos olhos. E é exatamente dessas contradições entre fé e toda a hipocrisia e sujeira que ergueram em torno dela através da História do mundo que A Via Láctea trata.

  • Crítica originalmente publicada em 07 de janeiro de 2014. Revisada para republicação em 28/08/2020, em comemoração aos 120 anos de nascimento do diretor e da elaboração da versão definitiva de seu Especial aqui no Plano Crítico.

A Via Láctea ou O Estranho Caminho de São Tiago (La voie lactée)- França, Itália, 1969
Direção: Luis Buñuel
Roteiro: Luis Buñuel, Jean-Claude Carrière
Elenco: Paul Frankeur, Laurent Terzieff, Alain Cuny, Edith Scob, Bernard Verley, François Maistre, Michel Piccoli, Claude Cerval, Muni, Julien Bertheau, Ellen Bahl, Agnès Capri, Michel Etcheverry, Pierre Clémenti
Duração: 100 min.

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