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Crítica | Adeus, Meninos

por Marcelo Sobrinho
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O diretor francês Louis Malle desenvolveu, desde o final da década de 50, uma das carreiras mais autorais e independentes do cinema francês. À margem da Nouvelle Vague, movimento que arregimentava grandes nomes, como Truffaut, Godard, Chabrol e Rivette, Malle construiu uma filmografia sólida e que ombreia facilmente com a de seus compatriotas, que o haviam rejeitado. Fazendo sucesso também nos Estados Unidos, o francês foi bastante prolífico em sua produção. Concluiu a fase francesa de sua carreira com uma das grandes obras-primas do cinema europeu, vencendo o Leão de Ouro no Festival de Veneza no ano de 1987. Adeus, Meninos é uma obra singela, sem arroubos narrativos, virtuosismos de direção ou excessos de sentimentalismo em seu roteiro. O filme de 1984 é comemorado até hoje exatamente por seu relato honesto e confessional, resgatando as memórias de infância do diretor em uma história comovente sem ser piegas. O russo Liev Tolstói afirmava que “não existe grandeza onde não há simplicidade, bondade e verdade”. Ingredientes que não faltam em Adeus, Meninos, para torná-lo um destaque dentro da vasta obra de Louis Malle.

O filme conta a história da amizade entre os meninos Julien Quentin e Jean Bonnet em um colégio católico da França ocupada, em pleno auge da Segunda Guerra Mundial. Bonnet é um menino judeu, cujo pai foi preso pelos nazistas e cuja mãe permanece desaparecida. As demais crianças não sabem a verdadeira identidade de seu colega e eis aí o primeiro grande acerto de Adeus, Meninos. Os primeiros 40 minutos de filme transcorrem como se se tratasse de um colégio comum, onde os alunos convivem normalmente, estabelecem laços, brincam com pernas de pau, assistem às aulas e também fazem suas típicas traquinagens. Enquanto o mundo lá fora degenera em ódio, morticínio e segregação, dentro dos muros da escola, todos os meninos são iguais. O espectador só entende o contexto histórico do longa-metragem quando os primeiros sinais são revelados às próprias crianças. Julien só descobrirá que a escola esconde um menino judeu quando o filme já se encontra em pleno desenvolvimento. A obra mostra que o que separa o convívio com as diferenças de um genocídio com a monta do Holocausto é a apenas a escolha. Judeus podem ser apenas pessoas “que não comem carne de porco”, como afirma um dos alunos.

Penso que o colégio católico pode ser visto como alegoria da própria Europa antes da ascensão do Nazi-fascismo. Os meninos passarão por um processo de maturação forçada assim como o próprio continente europeu, dominado por regimes totalitários e aniquilado pela destruição sem precedentes da guerra que viria. As crianças não parecem imaginar que um mal tão devastador possa ter se apoderado do mundo lá fora. Quando Adolf Hitler invade a Polônia em setembro de 1939, nem a Europa nem o mundo pareciam também capazes de projetar o cataclismo que marcaria tão profundamente a história do século XX. O olhar virginal dos alunos me traz à lembrança o espanto de um dos irmãos de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, quando lhe dizem o que significa a palavra “inferno”. O menino, absorto pela descoberta, não conseguia compreender por que haviam criado uma palavra tão bonita para designar algo tão horrível. O enfoque que a obra de Malle dá às crianças também as distancia inicialmente de qualquer compreensão dos horrores do mundo.

É curioso notar que Julien experimenta um cigarro pela primeira vez após ouvir de Bonnet a sua verdadeira história. É nesse momento que se dá a ruptura. Julien dava o primeiro passo para seu amadurecimento e para a transição traumática que faria ao mundo adulto. Ao fumar, transgredia sua condição de menino e se tornava capaz de receber as informações de um mundo recém-descoberto. Não é à toa que a frase mais conhecida e comovente do filme seja a sua declaração de que a manhã de janeiro em que ocorre o desfecho da obra ainda seria vivamente rememorada 40 anos depois. Também não é gratuito o último presente de Julien para Bonnet – um exemplar de As Mil e Uma Noites, livro que lhes foi proibido por seu conteúdo erótico. Os meninos compartilham do livro como dois recém-chegados a um mundo que lhes foi negado a priori, mas que se viram obrigados a conhecer. É interessante notar como, em Adeus, Meninos, a forma acaba por anteceder o conteúdo. Mesmo nos primeiros minutos de projeção, ainda sem nada sabermos sobre a real natureza do enredo, a fotografia invernal de Renato Berta dá o tom melancólico e taciturno da obra. Mas os meninos continuam a brincar, ainda que as sombras já não estejam tão distantes da escola.

Outro ponto em que Adeus, Meninos acerta em cheio é a opção por não tornar a figura do padre Jean, que protegera Bonnet dentro de seu colégio, um estereótipo de personagem caridoso e amável. Não que o personagem de Morier-Genoud não pudesse demonstrar também esse caráter, mas há certamente cenas em que ele se mostra rígido e enervado com o comportamento das crianças. A cena em que ele as repreende por roubar é bastante clara a esse respeito. Essa escolha torna ainda mais sincero o relato que Malle faz em seu filme, sem cair na esparrela de criar personagens fáceis e didáticos. O cineasta francês imprime em seu filme a ideia de que a verdadeira virtude é silenciosa. O padre Jean não é uma caricatura de herói. Não faz discursos empolados nem tem atos dramáticos e extremos. Ele apenas reconhece a humanidade daquele que lhe é diverso, pois sua fé contempla e acolhe os humilhados. “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino dos Céus”, diz ele em um de seus sermões.

Em um dado momento de Adeus, Meninos, todos assistem a O Imigrante, de Charles Chaplin. Nesse momento, a obra resgata não somente a capacidade de fazer humor com aquele que é diferente, ou seja, com aquele que professa outra fé, mantem outros hábitos ou vem de um local distante (como no caso de Carlitos no curta-metragem). O filme de Chaplin é capaz de criar afetividade pelo protagonista, que vive todo tipo de dificuldades em um país que não é o seu, em meio a tantos desconhecidos. O que o filme de Malle faz aqui é garantir que, mesmo no mais nefasto dos cenários, ainda haverá oportunidade para nascer afeto entre os homens. Adeus, Meninos termina com uma das despedidas mais melancólicas da história do cinema, mas ainda assim, salvaguardando essa ideia, que, para o nosso bem, nenhum conflito, por mais sangrento que tenha sido, foi capaz de extirpar da história humana.

Adeus, Meninos (Au Revoir Les Enfants) — França/ Alemanha Ocidental/ Itália, 1987
Direção:
 Louis Malle
Roteiro: Louis Malle
Elenco: Gaspard Manesse, Raphael Fejtö, Francine Racette, Stanislas Carré de Malberg, Philippe Morier-Genoud, François Berléand,  François Négret,  Peter Fitz
Duração: 104 min.

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