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Crítica | Aferim!

por Luiz Santiago
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O Império Otomano foi um Estado turco que durou de 1299 a 1923 e que em sua posse, no auge do Império, tinha as terras da Anatólia, parte do sudeste da Europa e do norte da África, o Oriente Médio e pequenas terras ocupadas nos limites dessas regiões. Entre os séculos XV e XVI, os turco-otomanos conheceram o seu melhor momento. Em meados de 1500, passaram por inúmeros conflitos em seu interior e voltaram a renascer em meados do século seguinte. Foi apenas na década de 1710 que reformas na administração do Império deram a aparência do que seria, em alguns anos, a estagnação turco-otomana. Guerras foram travadas, mas as opções de paz não raro eram postas na mesa. Do início para o final do século XIX, rebeliões de povos dominados surgiram, dentre elas, as lutas dos gregos, sérvios, búlgaros, montenegrenses e romenos, estes últimos, conseguindo independência oficial dos Otomanos em 1877. A história de Aferim! se passa na Valáquia, região ao sul da Romênia, 42 anos antes dessa independência.

O ano é 1835 e cavalgam pelos campos valáquios o policial Costandin e seu jovem filho Ionita, que receberam a missão de seu boyar (membro da alta aristocracia em lugares como os antigos Principado de Kiev, Principado de Moscou, Império Búlgaro, Moldávia e Valáquia, estes dois últimos, na atual Romênia) para achar um cigano foragido, acusado de ter roubado ouro de seu senhor e, como se descobrirá depois, também a sua honra.

O tema central de Aferim! é a escravidão em sua forma universal, mas a partir do momento que o tema é estabelecido, o diretor e co-roteirista Radu Jude nos faz olhar com atenção para a escravidão dos ciganos pelos romenos e nos dá uma aula de revisionismo histórico trazendo à tona características ideológicas, comportamentos sociais e organização da sociedade local no início do século XIX. Como o texto principal é extraído de documentos históricos, temos uma carga de realismo tremenda na película, dando a cada um dos personagens a melhor e mais dialética relação possível com o presente, o que não torna estranha a comparação temática — guardadas as devidas proporções — entre Aferim! e 12 Anos de Escravidão.

Como toda obra que tem como base textos históricos, a mistura de tempos e a interpretação ficam perceptíveis para o espectador, tanto pela construção dos diálogos quanto pela direção de arte, cuja reconstrução exemplar das vilas, meios de transporte e objetos nos translada para um mundo onde a religião ditava opiniões e oficializava preconceitos; onde falava-se de sexo e guerras com naturalidade e onde a separação entre etnias dava a uns não só a “legitimidade divina e ideológica” mas o direito físico e real de dominação. O filme discute as condições e relações humanas a partir de suas interações históricas e geopolíticas, que se marcam pela fugacidade do poder, pela brevidade da vida e por tradições que aos poucos ganham indivíduos que as contestem.

A jornada de Costandin e Ionita é narrada através de uma montagem episódica, com fades separando os contos dentro do filme, como se fossem relatos em um diário não intencional de viagem. A jornada ganha ares de western ainda na primeira metade da fita e o espectador irá se surpreender ao observar temáticas de clássicos do gênero disfarçadas no meio desse drama cômico, histórico e revisionista, tais como o dilema moral envolvendo o destino dos capturados em Consciências Mortas e a busca como honra de um trabalho, da vida e como recompensa que praticamente funde Rastros Rastros de Ódio e Por Um Punhado de Dólares, tudo isso dentro de uma perspectiva que poderíamos comparar à interpretação da História feita por Tarantino em Django Livre, mas dentro de uma proposta estética distinta. A composição dos quadros e os detalhes para a representação de um tempo passado em Aferim! está mais para A Fonte da Donzela e O Sétimo Selo do que qualquer tentativa mais vibrante de recriação.

Psicologia, religião, sociedade, western, eastern, libido, machismo, preconceito, escravidão e História da Ásia e da Europa são temas que o público encontrará em Aferim!, um filme que constrói e desconstrói uma missão para poder discutir um tema de forma crítica, como se deve. O uso antropológico da trilha sonora, a união de costumes e a visão de punição versus perversidade também estão lá, mostrando como o sacrifício de alguns povos serviram de instrumento de elevação para impérios e poderosos; este, o ponto que une o ciclo revisionista e fecha o diálogo sociológico mostrando que as situações vistas em nosso tempo — nesse caso, no leste europeu, mas a premissa é verdadeira para todas as sociedades — é consequência de um passado que parece não ter mudado nada além da aparência. A velha farsa da História, em suma.

Aferim! (Romênia, Bulgária, República Tcheca, França) — 2015
Direção: Radu Jude
Roteiro: Radu Jude, Florin Lazarescu
Elenco: Teodor Corban, Mihai Comanoiu, Toma Cuzin, Alexandru Dabija, Luminita Gheorghiu, Victor Rebengiuc, Alberto Dinache, Alexandru Bindea, Mihaela Sirbu, Adina Cristescu, Serban Pavlu, Gabriel Spahiu
Duração: 108 min.

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