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Crítica | Ajuste Final

por Luiz Santiago
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Falar de corrupção e falta de ética como doenças que contaminaram um certo número de instituições é hoje, com tanta informação e denúncias, algo muito bem entendível por cidadãos de todo o mundo, sejam civis, militares, políticos ou empresários. Ou bandidos. E com esta premissa irônica vem a pergunta adequada de alguém ponderado: “como podem bandidos cobrarem ética ou princípios morais de alguém?“. A esta pergunta, também feita pelo espectador nos primeiro 5 minutos de Ajuste Final (1990), os Irmãos Coen respondem com um sonoro: “porque qualquer tipo de relação de poder abre as portas para esta situação“.

É com base na desesperança de uma sociedade contaminada por acordos obscuros em todas as suas camadas que Joel Coen e Ethan Coen escreveram o roteiro desta sua terceira produção, fortemente influenciada pelo cinema noir e que passou por um processo difícil de composição, tendo a dupla abandonado o texto incompleto, escrito Barton Fink – Delírios de Hollywood inteirinho e só depois voltado para finalizar a história de Tom (Gabriel Byrne), Leo (Albert Finney) e Johnny (Jon Polito) em uma complexa ciranda de poder em um cenário que delineia ainda mais as influências noir da fita: os Estados Unidos durante da Leia Seca.

Controlar a distribuição de bebidas, porém, é apenas a face de maior destaque do filme. Em jogo, há ainda um tema tabu (a homossexualidade, tratada com acuidade histórica pelo roteiro); uma femme fatale e grupos bem distintos ligados ao protagonistas, cada um deles formado por indivíduos que se enquadram no humor nonsense dos Coen, muitas vezes indo contra a tudo o que se espera de pessoas daquele caráter, naquela posição.

É evidente que a conjunção de fatores tão diferentes resultariam em um filme de gângster misto de suspense em algo rico, incomum e que mostra a sociedade americana de final dos anos 1920 de uma outra forma. O roteiro de Ajuste Final não se preocupa em abordar o todo, o campo macro. Ele é, no melhor sentido da palavra, bairrista, quase íntimo, colocando seus personagens à prova, medindo suas reações e fazendo com que o espectador também jogue, como em O Príncipe de Maquiavel, com as muitas formas de exercer o poder, pensando o por quê de determinados acordos, rejeitando esta ou aquela atitude, confundindo-se com o “lado” que o astuto Tom está apoiando e surpreendendo-se — ou, em último estágio, frustrando-se — com o ponto final da história e a revelação um tanto anticlimática que dá cabo à saga.

O filme emprestou alguns temas básicos de dois livros de Dashiell Hammett, Colheita Vermelha (1929) e A Chave de Vidro (1931), criando assim bandidos multifacetados, um anti-herói e elementos psicológicos de peso (Jung) para tornar a obra intrigante não só nas idas de vindas de apoio, traições e manipulações de Tom, mas também no que faz este e os personagens à sua volta serem o que são. Questionar as atitudes de cada um é mostrar, a curto prazo, suas vulnerabilidades e é exatamente isso que o filme faz, desnudando com cautela cada um desses bandidos de muitas faces, mostrando migalhas de suas raízes morais verdadeiras, pessoas ou coisas com as quais se importam e caminhos que seguem para não morrerem. Percebam que algumas palavras ou frases são recorrentes para alguns. Alguns planos e ângulos são mais utilizados para mostrar um personagem do que outro. A paleta de cores tende a variar para um tom mais claro — no geral, a fotografia de Barry Sonnenfeld, também de Gosto de Sangue e Arizona Nunca Mais, é de tons térreos, construindo uma atmosfera de época ao mesmo tempo que firma pé em algo mais… formal, austero, importante — quando os personagens fazem confissões. E os figurinos também servem como elemento narrativo à medida que nos mostram carcamanos ou o “anti-herói” da história tentando resolver pequenos conflitos internos.

Quem coroa estas pistas adicionais sobre cada personagem é o compositor Carter Burwell (também de Gosto de Sangue e Arizona Nunca Mais), que escreve uma trilha sonora clássica e dramática, um verdadeiro mergulho na personalidade de Tom, que embora não guie sozinho os blocos do filme, serve como junção ou rompimento entre eles, tanto que a montagem ressalta a sua presença com fade-ins ou fade-outs entre um ponto e outro, dando a entender pequenos ciclos começados e terminados a partir das atitudes de um único homem, seja pessoalmente ou à distância.

Alguns cinéfilos fazem comparação de Ajuste Final com filmes que de uma forma ou de outra abordam conceitos dos livros de Dashiell Hammett, como Yojimbo – O Guarda-Costas (1961) e Por Um Punhado de Dólares (1964), leitura que pode adicionar novas cores ao trabalho dos Coen neste longa, principalmente na visão rica para quem é o bandido, o fora-da-lei (percebam a diferença entre os dois nestas obras) e a lei. O que é certo é que os diretores trouxeram referências e fizeram homenagens muito bem contextualizadas a obras clássicas que igualmente pisam nesse universo, como Scarface: A Vergonha de uma Nação (1932), O 3º Homem (1949) e Janela Indiscreta (1954).

Esse background cinéfilo, porém, não impediu de Ajuste Final ser um fracasso de bilheteria quando de seu lançamento. A obra só teve melhor recepção por parte da crítica, principalmente com o passar dos anos. Hoje, não é raro encontrar espectadores e analistas que veem em Ajuste Final um dos melhores trabalhos dos Coen. Um filme sobre bandidos realizado com um plano de fundo onde se discute moral e ética. Tem como se esquecer de algo assim?

Ajuste Final (Miller’s Crossing) — EUA, 1990
Direção: Joel Coen, Ethan Coen
Roteiro: Joel Coen, Ethan Coen
Elenco: Gabriel Byrne, Marcia Gay Harden, John Turturro, Jon Polito, J.E. Freeman, Albert Finney, Mike Starr, Al Mancini, Richard Woods, Thomas Toner, Steve Buscemi
Duração: 115 min.

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