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Crítica | Além da Linha Vermelha

por Rafael W. Oliveira
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O caso da produção de Além da Linha Vermelha talvez tenha sido um dos mais curiosos dos anos 90 em Hollywood. Não apenas pelo retorno de Terrence Malick da reclusão voluntária de 20 anos, mas também pelos métodos do diretor em sua pós-produção: o primeiro corte do longa possuía cerca de 6 horas de duração, e quando finalizada sua edição, Malick ainda preservou diversos rostos renomados e outros que viriam a alcançar seu estrelato em breve, mas deixou de fora, sem dó nem piedade, nomes como Bill Pullman, Mickey Rourke e Viggo Mortensen da metragem final, costume esse que viria a ser constante nas produções futuras de Malick.

Deixando as curiosidades histórias de lado, é válido ressaltar que o filme de guerra de Malick (embora também seja reducionista apenas apontá-lo assim) chegou no mesmo ano em que Steven Spielberg explodiu com o feroz O Resgate do Soldado Ryan, tendo faturado em seguida um dos Oscars de direção que ornamentam sua estante. E não obstante, ambos os filmes não poderiam ser mais divergentes entre si, pois enquanto a obra de Spielberg abraça a crueldade e a dureza de suas imagens gráficas, o projeto de Malick ambienta seus personagens na guerra para criar seus próprios paralelos entre a relação entre homem e natureza, existencialismo e o questionamento sobre a existência de uma divindade. Todos temas absolutamente recorrentes na filmografia de Terrence Malick.

Malick, de fato, usa do cenário hostil e claustrofóbico da Segunda Guerra Mundial para falar sobre a própria natureza humana, ou melhor, simbolizá-la através de artifícios como uma constante narração em off que expõe (adequadamente) os pensamentos de seus personagens, o estabelecimento de um tom poético através da fotografia de John Toll que valoriza a luz do sol penetrando a floresta através de pequenas frestas entre as árvores, e da trilha evocativa de Hans Zimmer, em constante estado de melancolia divina. Malick quer, antes de tudo, levar o espectador à reflexão junto aos diversos rostos que marcam a narrativa de Além da Linha Vermelha.

Talvez tanta pretensão em soar reflexivo possa soar redundante ao ser colocada desta forma, e certamente o seria se não fosse pela habilidade de Malick, ex-estudante de filosofia, em estabelecer questionamentos complexos e verdadeiramente humanos através de suas imagens tão repletas de paralelos, significados e leituras, como quando, num primeiro momento, vemos um jacaré, animal de natureza violenta, adentrar as águas da floresta, a mesma floresta por onde os soldados irão adentrar e lutar por suas vidas. O apego da câmera nas luzes solares em meio a este cenário imediatamente representa a dúvida de qualquer ser humano sobre quem estaria nos observando lá de cima, sobre quem estaria nos iluminando em meio ao ambiente destrutivo e sanguinolento da guerra.

Curioso notar, aliás, o momento em que Malick, antes dos soldados desembarcarem na ilha, passeia por cada rosto em closes, como que nos querendo familiarizar serenamente com cada expressão de ali, seja de medo, relutância ou convicção. Mas quando desembarcam, os rostos se misturam, poucos se diferem um do outro, e é como se cada soldado se tornasse um só em tela, cada um igualmente vulnerável e suscetível aos efeitos mais devastadores de corpos sendo destroçados, granadas explodindo e a perda de companheiros diante dos próprios olhos. O roteiro do próprio Malick, à partir do livro de James Jones, realmente sabe como nos humanizar em meio aquela ambientação.

Em contraponto, ouvimos constantemente os devaneios dos personagens sobre suas posições naquele ambiente, o objetivo da guerra (“É tudo sobre propriedade!”) e seus desejos mais íntimos em retornar para o afago de seus lares, algo exemplificado na figura do soldado Bell (Ben Chaplin), que lê cartas enviada pela esposa (Miranda Otto) e relembra de momentos ao seu lado em cenas que, infelizmente, parecem um tanto plastificadas demais para a proposta de Malick, o que acaba diminuindo o impacto de uma certa revelação ao soldado Bell em determinado momento.

Mas vale ressaltar novamente que a escolha de Malick em reunir grandes nomes masculinos em seu elenco, mas pouco diferenciá-los entre si nos momentos mais explosivos (alguns relegados a diálogos curtíssimos, como John Travolta e George Clooney) é ousada, acertada e de bom gosto para com o público ao apagar a imagem de estrelas de seu elenco e transformá-los em meros homens de carne e osso, que batalham lado a lado por um ideal, por um objetivo, seja ele contestável ou não. O belo ponto de virada é que, apesar de todos estarem sob a mesma mercê iminente da morte, Malick trabalha com pontos de vista distintos que nos oferecem leituras ricas e diversas sobre o horror da guerra.

E só mesmo Terrence Malick para, em meio aos efeitos devastadores e inapagáveis da guerra, conseguir criar poesias visuais e reflexões extremamente humanas sobre o papel de cada um, sobre a degradação pessoal do homem e para onde isto nos levará. E se levará para algum lugar, quem estará lá esperando por nós?

Contemplativo e introspectivo, Além da Linha Vermelha é um dos estudos mais completos sobre o resultado da guerra no íntimo do ser humano.

Além da Linha Vermelha (The Thin Red Line) — EUA, 1998
Direção: 
Terrence Malick
Roteiro: Terrence Malick (baseado no livro de James Jones)
Elenco: Jim Caviezel, Sean Penn, Nick Nolte, Elias Koteas, Ben Chaplin, Dash Mihok, John Cusack, Adrien Brody, John C. Reilly, Woody Harrelson, Miranda Otto, Jared Leto, John Travolta, George Clooney, Nick Stahl
Duração: 170 min.

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