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Crítica | Amor (2012)

por Marcelo Sobrinho
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“E de repente ficou claro para ele que aquilo que o estava oprimindo, e que parecera não querer deixá-lo, agora se esvanecia por todos os lados. Sentiu-se cheio de pena por eles, deveria fazer alguma coisa para tornar-lhes isso tudo menos doloroso, libertá-los e libertar-se desse sofrimento. ‘Tão certo e tão simples’, pensou. ‘E a dor? O que foi feito da dor? Onde está você, dor?’”

A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói

É com o som de uma porta se quebrando, seguido da entrada de policiais em um confortável apartamento parisiense, que o austríaco Michael Haneke inicia Amor, seu prestigiado filme de 2012, que emocionou plateias mundo afora e deu a seu realizador sua segunda Palma de Ouro em Cannes. Haneke é, indubitavelmente, um dos grandes provocadores do cinema atual. Em uma entrevista, ele reafirmou sua obra como um libelo contra o “cinema fast-food norte-americano e sua descapacitação do espectador”. De fato, encarar um de seus filmes na raça, sem nenhuma vivência de cinema, pode ser profundamente desagradável para os que anseiam por respostas prontas. Por outro lado, os que dizem que ele deseja apenas torturar seu público me parecem não ter entendido nada de seus filmes. É inegável que Haneke põe o espectador de frente para questões brutais e sem opacificá-las. Mas é preciso notar também que o diretor abre mão de controlar as consequências disso para o público. O austríaco deseja que o espectador ocupe seu lugar. Seu trabalho é, portanto, de interlocução.

O prólogo de Amor exibe a morte sem poupar o espectador de seu horror. Em A Solidão dos Moribundos, Norbert Elias trata dela, em uma perspectiva contemporânea, como algo “contagioso e ameaçador”, o que provoca um afastamento entre os viventes e os moribundos. Em outro trecho, ele fala destes últimos como seres viventes, mas alijados “pelos vivos no mundo dos vivos”. Haneke, ao expor Anne cadavérica, determina claramente os rumos de seu filme e obriga o público a suportar a ojeriza pela morte já no introito de seu longa-metragem. Sua câmera concluirá elegantemente esse momento inicial com uma panorâmica, que revela a protagonista já em estado de decomposição. Embora a cena seguinte mostre o casal Anne (Emmanuelle Riva) e Georges (Jean-Louis Trintignant) em um recital de Alexandre Tharaud, o cenário do filme está praticamente restrito ao apartamento onde viverão, solitários, seus últimos dias juntos.

A solidão é o primeiro ponto fundamental em Amor. O apartamento é quase sempre escuro, trabalhado em uma fotografia desvitalizada, que se soma aos silêncios prolongados. As noites são longas e delas só se ouve a respiração fatigada dos dois idosos. Michael Haneke, seguindo fielmente seu estilo, realiza cortes secos, com a câmera estática registrando os cômodos escurecidos na noite profunda. Anne e Georges encontram-se no crepúsculo da vida. O casal é visitado esporadicamente pela filha, mas os laços que ela estabelece com os pais tornam-se cada vez mais frouxos à medida que a saúde da mãe, vítima de dois acidentes vasculares cerebrais, se deteriora e o pai se vê diante das decisões mais difíceis. Haneke mostra a velhice como um doloroso exílio da contemporaneidade, em um mundo dominado pela desvalorização da memória e pela falência das narrativas. O idoso aparece destituído da posição que havia ocupado por tanto tempo – a de guardião da memória.

A música que o casal compartilha é depositária dessas narrativas. Michael Haneke pensou em se tornar pianista profissional na juventude. Os planos não prosperaram e a verve artística acabou tomando os rumos do cinema. Em Amor, a música de Franz Peter Schubert funciona como abrigo para as histórias e os afetos que o casal Anne e Georges acumulou ao longo da vida. Essas histórias não são reveladas no filme, mas apenas e muito corretamente sugeridas. A revelação de todos esses sentidos poderia empobrecê-los e Haneke entende isso muito bem. Daí vem a escolha do cineasta de manter a câmera fixa sobre a plateia do recital de piano, logo no começo. Georges dirige seu olhar para a esposa nesse momento, enquanto o pianista expõe o tema do primeiro improviso Opus 90, de Schubert. Haneke deseja que o significado desse olhar permaneça oculto ou, no máximo, que seja suspeitado. Eis a riqueza da cena. Mais à frente, em mais um momento glorioso de Amor, Georges se lembrará de Anne ao piano, enquanto ouve o lindíssimo terceiro improviso, do mesmo Opus e do mesmo compositor.

Outro ponto importante do longa-metragem é sua abordagem sincera das perdas que ocorrem na fase final da vida e que são vivenciadas tão fortemente pelos protagonistas. Existe uma cena bastante marcante a esse respeito. Quando Anne chama Georges para ajuda-la a se levantar do vaso sanitário após urinar, o austríaco mantem sua câmera estática, como lhe é tão caro fazer, em um plano frontal longo o suficiente para fazer o espectador querer desviar o olhar. Haneke nos obriga a partilhar do enorme constrangimento experimentado tanto pela esposa debilitada como pelo marido que a socorre. A imobilidade de Anne, a demência que ela desenvolve e também sua fala arrastada e gemente na segunda metade do filme adicionam dificuldade à experiência do casal e do público. É com dureza que Michael Haneke retrata seus dias finais e com brilhantismo que a grande atriz Emmanuelle Riva os interpreta.

O diretor já declarou seu desprezo por filmes com respostas fáceis a questões complexas. Para ele, são obras cínicas e que tentam reduzir o irredutível. Amor não é só feito de respostas difíceis, imprecisas e sem nenhum intento de esgotar questões. Ele é constituído das cenas mais difíceis sobre a finitude, assumindo até o tema da eutanásia, mas sem transformá-lo em mote principal nem fazer militância sobre ele. Seu filme é mais sensível. A temática está embutida em uma das cenas mais impactantes do cinema neste século, mas permanece gravitando em torno de uma discussão bem mais ampla. A morte, a velhice, o amor e o desinteresse contemporâneo em salvaguardar a própria noção de memória são o cerne do filme. Mas a cena mais espinhosa do longa-metragem não comporta sombras. A personagem de Riva morre em uma das cenas mais solares de Amor, com as luzes da manhã penetrando o quarto. Se o poeta Johann Wolfgang von Goethe pedira “luzes!” em suas enigmáticas palavras finais, Anne as recebe de Michael Haneke com a ternura de uma oferenda final.

A morte em Amor ressurge em outra perspectiva – longe da impessoalidade e da assepsia dos hospitais. Ela ocorre no cenário onde se deu a vida, escolhida mutuamente e vivida com a honestidade que se espera de um último capítulo. A metáfora de sua aceitação está na pomba. Ela surge primeiramente como um mau agouro e é rejeitada por Georges, sendo colocada para fora da janela do apartamento. Ao final, ela reaparece, mas, dessa vez, é capturada e acarinhada pelo marido. Não é mais o mau presságio de antes. É apenas desfecho. Consumação da vida, que só alcança sentido na comparação que Rubem Alves fazia com uma sonata. Ambas aspiram a seu acorde final. Ou nas palavras do próprio escritor e psicanalista mineiro: “tudo o que se completa deseja morrer”.

Amor (Amour) – França/Alemanha/Áustria, 2012
Direção: Michael Haneke
Roteiro: Michael Haneke
Elenco: Jean-Louis Trintignant, Emanuelle Riva, Isabelle Huppert, Alexandre Tharaud, William Shimell, Carole Franck, Rita Blanco, Dinara Drukarova, Laurent Capelluto, Damien Jouillerot, Walid Afkir, Ramón Agirre
Duração: 127 min.

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