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Crítica | Aniki Bóbó

por Luiz Santiago
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Dirigir crianças não é uma tarefa fácil. Raros os diretores que conseguiram trabalhar bem com um elenco infantil, e para mim, três dentre os maiores nesse segmento são François Truffaut, Abbas Kiarostami e Michael Haneke. O universo infantil, quando trazido para o cinema, raramente se põe como motivo principal, obedecendo a “linha adulta” da história. Quando a proposta é filmar crianças, o trabalho do realizador se torna mais complexo, todavia, o produto alcança um valor especial. Filmes tão diversos como Um Dia, Um Gato (1963), A Fantástica Fábrica de Chocolate (1971 e 2005) e O Pequeno Nicolau ou As Férias do Pequeno Nicolau (2009, 2014) trazem seu encanto particular e atingem o espectador de diferentes maneiras.

Há de se convir, no entanto, que poucas obras fazem uso da infância para guiar o roteiro. Nos filmes de horror, por exemplo, o motivo não é a criança e sim uma inadequação espiritual (exemplo máximo encontrado em A Colheita Maldita); já em obras um pouco mais racionais como O Labirinto do Fauno (2006) e O Orfanato (2007), a criança ou o seu mundo é o ponto de partida para o desenvolvimento da história. Nesses casos, espelhar os problemas adultos é a via mais percorrida e as crianças não são tratadas como livres de problemas, com aura santificada ou inocência incontestável, tal qual nos exemplos por excelência: Zero de Comportamento (1933), Os Incompreendidos (1959) e A Fita Branca (2009).

No primeiro longa-metragem de Manoel de Oliveira, Aniki Bóbó (1942), percebemos que esta infância da qual falávamos não está posta como enfeite ou um adendo ao enredo, mas é o próprio tema central do filme. O diretor português dá um salto na carreira a partir de então. Primeiro, porque passa dos documentários de curta-metragem para um longa, depois, porque a película, baseada no conto Meninos Milionários de Rodrigues de Freitas, é dotada de um realismo social e um humanismo crítico impressionantes. Embora o filme não tenha feito sucesso à época de seu lançamento, é considerado hoje um dos precursores do neorrealismo, qualidade inicialmente reconhecida pelo crítico francês Georges Sadoul.

Aniki Bóbó se passa nos bairros pobres da cidade do Porto, em Portugal. A autocrítica tão comum ao cinema português, encontra, nesse primeiro loga de Oliveira, uma forte expressão, algo que certamente desagradaria a censura salazarista: depois de Aniki Bóbó, o diretor só voltaria a trabalhar em outro longa em 1963, quando retornou de um longo silêncio forçado com Ato da Primavera. Mas o que há demais em Aniki Bóbó?

Em linhas gerais, é um simples. De forma lírica e bem humorada, Oliveira recria a história que se apresenta nos créditos de abertura (num jump-cut narrativo) e para a qual esperamos voltar a todo momento. Sem pressa, mas de maneira muito ágil, os eventos que envolvem um grupo de crianças portenhas, suas paixões, anseios, preocupações e atitudes são narrados de forma a nos fazer entender o isolamento de cada uma em seu universo particular (uma metáfora social). Os adultos aparecem de maneira autoritária e apenas no final haverá uma mudança nessa forma de apresentação, a única atitude errônea tomada pelo diretor, porque além de repentina, não se explica e, a muito custo, se justifica.

O roteiro de Aniki Bóbó tem um ritmo dramático tão bom que é difícil acreditar numa adaptação por mais de uma pessoa (que além da fonte literária, trabalhou com os poemas de Alberto Serpa). A história se constitui madura desde o início e chega ao ápice do pessimismo em seus momentos finais, lembrando-nos muito o destino do garoto Edmund em Alemanha, Ano Zero (Rossellini, 1947). Também na forma, o diretor português acerta a mão, quando mostra as alucinações do jovem Carlitos. A punição divina e terrena saltam da consciência da criança, perturbando-lhe o sono por causa de uma boneca roubada. A pobreza, a honestidade e a delinquência são temas transversais que acompanham todo o enredo.

A fotografia quase naturalista do filme e a sua enorme quantidade de externas dão-lhe um ar de liberdade. Oliveira já explora aqui as tomadas mais longas, descritivas, quase etnográficas, como fizera em seus documentários anteriores, especialmente em Douro, Faina Fluvial (1931) e Famalicão (1941). Ao propor trabalhar o universo infantil, Manoel de Oliveira traz problemas reais de qualquer criança pobre de uma cidade litorânea em plena Segunda Guerra Mundial. Os conflitos bélicos continentais estão ausentes, mas o funcionamento do espaço em redor indicam uma crise; crise esta que se impregna nas personagens e escreve-lhe os destinos. A guinada final da história nem de perto nos decepciona. O filme ganha a partir de então um novo vigor, a história parece renovar-se a cada acontecimento paralelo e caminha para o seu fim imprevisível.

Aniki Bóbó é um filme infantil, mas sobre crianças de verdade, não sobre filhotes-fantoches à la Disney, com problemas-padrão, dificuldades artificiais e resoluções fáceis, moralmente massacrantes e supra-direitistas. O roteiro dos contos fantásticos passa longe da obra de Oliveira. O que temos em Aniki Bóbó é uma crônica social; um pouco contida, é verdade, mas muito mais próxima de Os Esquecidos do que de Peter Pan.

Aniki Bóbó (Portugal, 1942)
Direção: Manoel de Oliveira
Roteiro: Manoel de Oliveira, Nascimento Fernandes, António Lopes Ribeiro, Manoel Matos, Alberto Serpa
Elenco: Américo Botelho, Horácio Silva, Feliciano David, Nascimento Fernandes, Fernanda Matos, Rafael Mota, Armando Pedro, Antonio Melo Pereira, Antonio Santos, Vital dos Santos
Duração: 71 min.

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