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Crítica | Apocalypse Now

por Marcelo Sobrinho
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“Era tudo muito simples e, ao término daquele apelo emocionante a todo sentimento altruísta, fulgurava, luminoso e aterrador, como um lampejo de um relâmpago sobre um céu sereno: ‘Exterminem todos os selvagens!’.”

O Coração das Trevas, de Joseph Conrad

Não, Apocalypse Now não é um filme sobre a guerra. A frase pode parecer estranha, pois o clássico de Francis Ford Coppola será sempre um dos grandes títulos do gênero em toda a história do cinema. Mais do que isso, uma das obras fundamentais para entender a história da sétima arte e sua evolução técnica. Coppola travou uma verdadeira guerra pra conseguir levar a cabo seu filme. Martin Sheen sofreu um infarto em meio às filmagens nas Filipinas e precisou ser afastado por meses. As previsões orçamentárias foram completamente estouradas e o estrelismo de Marlon Brando chocou-se constantemente com o rigor do diretor. As gravações duraram mais de um ano, ao longo dos quais o elenco esteve à beira da loucura junto com seus personagens. A epopeia de Coppola para concluir sua grande obra-prima incluiu até furacões, que chegaram a destruir parte do set de filmagens.

Tudo em Apocalypse Now é guerra, desde a sua feitura ao contexto histórico que motiva o enredo, ou seja, a insanidade da Guerra do Vietnã. O diretor e roteirista transporta para a guerra a história de O Coração das Trevas, novela de Joseph Conrad sobre um grupo de marinheiros liderados pelo capitão Marlow, que se aventura no coração da floresta do Congo para encontrar o enlouquecido Kurtz. Na obra de Coppola, o contexto histórico não é o colonialismo britânico, mas sim a guerra e o malogrado projeto civilizatório. Nesse ponto, o longa-metragem é brilhantemente irônico ao mostrar que, embora os selvagens fossem os vietnamitas e cambojanos, são os norte-americanos que se divertem lançando a esmo o seu napalm sobre civis inocentes, enquanto surfam nas praias vietnamitas. O coronel Kilgore (Robert Duvall) encerra bem essa ideia como uma mistura de herói e falastrão. É dele a célebre frase “Adoro o cheiro de napalm pela manhã”. Tanto sua presença em cena como seu súbito e pouco explicado desaparecimento são fundamentais no longa-metragem.

Para quem leu a sombria novela de Conrad, é obrigatório dar destaque à maravilhosa transposição que Coppola faz entre as linguagens da literatura e do cinema. A prosa densa e um tanto onírica do britânico reaparece na cinematografia febril do norte-americano com igual brilho. Em Conrad, muitos acontecimentos são repentinos e o próprio narrador não sabe bem o que está acontecendo. Em Coppola, a fotografia saturada e que escurece mais a cada cena se soma aos enquadramentos assimétricos e improváveis do diretor. Isso para não citar também a presença de muita fumaça na segunda metade do filme, tal como em um delírio ou pesadelo. Os ataques sofridos pelo capitão Willard (Martin Sheen) ocorrem de supetão, mas em vez de flechas que surgem da escuridão da mata, temos tiros disparados de todos os lados, enquanto os soldados sobem o rio Nung em busca do coronel Kurtz (Marlon Brando).

Apocalypse Now reúne algumas das cenas mais antológicas do cinema. A abertura traz uma floresta vietnamita indo aos ares, incinerada por napalm, enquanto a trilha sonora embala esse breve prelúdio com The End, clássico da banda americana The Doors. Mais à frente, provavelmente a cena mais conhecida do filme – o bombardeio da costa vietnamita ao som de A Cavalgada das Valquírias, trecho que abre o terceiro ato da ópera A Valquíria, de Richard Wagner. Além da trilha sonora memorável, a cena conta com um dos melhores trabalhos de câmera já realizados, com cortes secos completamente opostos à montagem em fusão que ocorre em boa parte da obra. A decupagem dinâmica de Coppola insere o espectador na turbulência da guerra como poucas vezes se viu em filmes do gênero. Não há como não citar também um dos planos mais belos da história do cinema, registrado quando o capitão Willard chega ao local onde está Kurtz e avista os selvagens em suas canoas. A guerra e sua loucura intrínseca ganham a beleza e a plasticidade de uma verdadeira pintura.

Mas repito: Apocalypse Now não é um filme sobre a guerra. Agora me explico melhor a esse respeito. É óbvio que Coppola escolhe um tema bastante fresco para os americanos em 1979, apenas quatro anos após o fim da Guerra do Vietnã. Mas penso que a proposta é completamente diferente da que geralmente se aborda. O Vietnã é, antes de tudo, símbolo do esfacelamento da ideia de civilização em pleno espocar da ciência, da técnica e do progresso. Os vietcongues, bárbaros e embrutecidos, conseguiram impingir uma derrota histórica aos norte-americanos, que saíram do conflito completamente destroçados. Os civilizados e civilizadores tiveram seu projeto arruinado em poucos anos. Coppola demonstra que civilização e barbárie caminham lado a lado, muito mais próximas do que se imagina. Mata-se em larga escala tanto em sociedades “pouco civilizadas” como em nome do projeto de civilizá-las. É importante dizer que se lançaram mais bombas sobre o Vietnã do que em toda a Segunda Grande Guerra.

Há uma cena em especial que revela bem a transformação que acontece durante a subida do rio Nung. Um soldado atira furiosamente contra a escuridão, mesmo não havendo inimigos para alvejar. Willard lhe pergunta quem está no comando e o combatente ensandecido responde com expressão de horror – “Não é o senhor?”. Não havia mais comando algum. Mais do que uma guerra, a trajetória ao longo do rio transformava em vapores os impulsos civilizatórios de cada soldado, fazendo emergir seus instintos mais primitivos, como os de matar e sobreviver. O historiador Yuval Harari, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, afirmou em uma entrevista: “Nosso DNA pensa que ainda estamos na savana africana”. Nossa capacidade de criar crenças compartilhadas, como deuses, religiões, democracia, governo e moral, nunca foi capaz de eliminar nossa proximidade aterrorizante com o caos e a barbárie. Quando Kurtz exclama “O horror, o horror!” em seu último suspiro, ele deixa exatamente essa derradeira constatação como um legado maldito.

Apocalypse Now nega a emblemática afirmação de Euclides da Cunha – “Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos”. A humanidade não só não elimina seus impulsos anti-civilizatórios como segue sua história movida em grande medida por eles (e não a despeito deles). Coppola revela o homem não como um ser em aprimoramento, mas caminhando sobre o fio de uma navalha para manter todo o arcabouço civilizacional que construiu. Aliás, é precisamente essa a metáfora que o coronel Kurtz utiliza em sua fala – “Meu sonho é este: uma lesma andar sobre o fio de uma navalha e sobreviver”. O filme de Coppola é categórico: despende-se uma quantia colossal de energia para manter tudo de pé, enquanto a barbárie nos espreita logo ao lado, a um passo de distância. “Uma lança!” exclama um dos soldados de Willard, atingido durante um ataque ao barco. É o que nos separa da besta-fera.

Apocalypse Now é visto muitas vezes como um manifesto anti-bélico, abordando a insanidade da guerra e a degradação física e psicológica do soldado. Para mim, ele segue sendo muito mais do que isso. O filme que quase levou Francis Ford Coppola à falência esgarça todas as fronteiras entre a civilização e a barbárie a ponto de rompê-las. Ou melhor, não as rompe. Explode. Com Wagner e toneladas de napalm.

Apocalypse Now – EUA, 1979
Direção: Francis Ford Coppola
Roteiro: Francis Ford Coppola, John Milius (baseado em obra de Joseph Conrad)
Elenco: Martin Sheen, Robert Duvall, Frederick Forrest, Albert Hall, Dennis Hopper, Harrison Ford, Marlon Brando, Sam Bottoms, Laurence Fishburne, Collen Camp, Christian Marquand, Aurore Clement, Roman Coppola, R. Lee Ermey, Francis Ford Coppola, Vittorio Storaro
Duração: 153 min.

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