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Crítica | Arca Russa

por Luiz Santiago
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Arca Russa foi filmado em um único dia, pouco antes do solstício de inverno de 2001 e em um único e histórico plano-sequência de 96 minutos. Através dele, Aleksandr Sokúrov, que antes de ser cineasta é historiador, metaforiza a passagem bíblica do dilúvio e da Arca de Noé para nos fazer rememorar 300 anos de História da Rússia em um passeio pelo Museu Hermitage, o complexo monumental que inclui o famoso Palácio de Inverno dos Romanov e que serve como reflexão sobre a literatura, escultura, artes plásticas, música, arquitetura, teatro e, de maneira metalinguística e na ponta do iceberg, o cinema da “Grande Mãe” através dos tempos.

O filme é conhecido por seu pioneirismo técnico [notem que a ideia de plano-sequência não era inédita no cinema, mas nunca houvera sido feita com 96 minutos sem cortes com essa proposta narrativa — um filme de longo plano chamado Time Code, quase com a mesma duração, mas com proposta narrativa diferente, menor elenco e espaço, já tinha sido realizado dois anos antes], pela tremenda e admirável logística de filmagem pelo Museu, lidando com 2 mil atores, passando por 33 salas, filmando 3 orquestras em três diferentes ocasiões e, no plano conceitual, refletindo sobre a questão russa a partir da visão cultural e “disputa” com os medalhões europeus, tais como França, Itália, Alemanha, Áustria…

O filme é uma metáfora a duas arcas bíblicas, à já citada Arca de Noé, e também à Arca da Aliança, que era uma espécie de “museu ambulante” para o povo hebreu, carregando as coisas mais valiosas para sua identidade e prova dos milagres que Deus havia realizado para eles. Desse modo, o Hermitage tanto flutua sob as águas do dilúvio da História, arrastado pela memória, mas também mantido vivo por ela; quanto é simbolicamente carregado pelo povo russo, pois contém em seu interior algumas das mais valiosas realizações humanas, vindas de diferentes lugares e épocas.

Para aproveitar bem o filme, o espectador deve entender que Arca Russa é um exercício cinematográfico e histórico, uma viagem no tempo exposta de forma semidocumental e guiada por dois personagens, um cineasta do século XXI perdido no tempo (o próprio Sokúrov, cuja visão subjetiva é o foco da câmera) e Marquês de Custine, também chamado de O Estrangeiro e O Europeu. Desde a chegada de Sokúrov ao passado e o início de sua viagem temporal, onde cada grupo de salas representa décadas ou séculos diferentes (uma justaposição de tempos, pois o conteúdo artístico exposto nas salas é, na maioria das vezes, mais antigo do que o tempo histórico mimetizado nas cenas), vemos que um dilema é destacado: a europeização da Rússia, questão tão conhecida dos escritores nacionais no século XIX.

A partir da metade da obra, esse dilema vai aos poucos ganhando cores políticas e o diretor faz duras mas disfarçadas críticas ao comunismo e sua “arte para as massas” — talvez venha dessa interpretação o apontamento de que o filme seja reacionário e maneirista, o que evidentemente é uma bobagem — e fala sobre as mortes em massa no país, durante a invasão da Alemanha, na 2ª Guerra Mundial, e durante todo o período Stalinista (a sala dos caixões é um misto de terror e humor negro que traz isso à tona).

Os diálogos se dividem em pequenas frases, discussões ou acertos vistos de maneira solta, todos caraterísticos de sua época, a começar pelo Czar Pedro, o Grande (1672 – 1725), que é visto batendo em um General, logo no começo do filme, e terminando com o último baile dado no Palácio de Inverno (1913), quatro anos antes da Revolução Russa, evento que acabaria por depor e assassinar a família Romanov, da qual vemos um pequeno (e esteticamente belo) momento, logo antes do baile, quando se reúnem à mesa.

Entre esses dois extremos, o filme escorre por um ensaio de uma peça de teatro, assistido pela Czarina Catarina II, a Grande (1729 – 1796) e que mais à frente, já velha, vemos correr pelos jardins suspensos; à recepção do Embaixador da Pérsia feita pelo Czar Nicolau I (1796 – 1855), na Sala São Jorge do Hermitage, onde em 1906 se reuniria a Duma, no início da fragilidade da monarquia russa; a um momento com a família do Czar Nicolau II (1868 – 1918), onde também é destacada a mais travessa de suas filhas, a Princesa Anastásia; e, como um ponto histórico fora da curva, projetado para um “futuro próximo”, a citação ao Cerco de Leningrado (1941 – 1944).

É esse cenário histórico, sonhador, simbólico, metafórico, artístico e, por que não, caótico e confuso, que Sokúrov mergulha e manipula com maestria. Ele se desloca como um cineasta do século XXI (filmando Arca Russa em 2001) para o século XIX, sem saber aparentemente como, e retrocede para o século XVIII, avançando no tempo a partir daí, conhecendo personalidades históricas, encontrando-se com o Marquês de Custine e balbuciando, repetindo ou negando muitas das conclusões negativas que o Marquês faz sobre a Rússia.

A ambivalência narrativa aumenta e se torna mais deslocada — como em um verdadeiro exercício de memória, onde as coisas se confundem e as falas se tornam uma bagunça mista de lembrança e invenção — ao sabermos que as falas de Custine foram retiradas do conjunto de livros La Russie en 1839, escritos pelo Marquês após o período em que esteve na Rússia.

Passado, presente e perspectivas de futuro, sob diferentes pontos de vista, são pinçados no filme tendo obras de arte e salas do museu como motivadores críticos. Isto pode até afetar a experiência do público no início e travar um pouco a sessão no miolo da obra, que é menos incisiva do que o restante, mas se olharmos o filme como um fluxo físico da memória de uma nação, é natural que tenhamos, em trezentos anos, momentos vivos e momentos de bastidores; silenciosos e musicais; claros e escuros a serem considerados e representados.

A “Rússia de ontem” e a “Rússia de hoje” são espelhadas e geram perguntas, pessimismo e uma tomada de consciência sobre o que se é a necessidade de avançar na História, não parar no tempo, prosseguir. Isto é aplicado tanto ao contexto sociopolítico do filme quanto à maneira de fazer cinema de Sokúrov, com seu virtuosismo estético e o fato de aqui, optar filmar com câmera digital (em 2001, o formato metia medo na maioria dos diretores e havia a polêmica do “cinema pasteurizado” que o digital geraria), uma que ele mesmo mandou construir para poder suportar o armazenamento de material em disco rígido, tudo isso em um aparato que se ligava à steadicam diretor de fotografia Tilman Büttner, que baila pelo Hermitage contornando sombras, capturando diferentes nuances de luz natural e bem organizadas intervenções de luz da própria produção e fazendo de cada sala-e-época uma diferente experiência visual para o espectador.

Com um intenso trabalho de toda a equipe técnica e setores que precisaram fazer pesquisas diferentes para cada espaço visitado pela câmera (figurinos, cabelo e maquiagem, principalmente), Arca Russa termina com o limite do “futuro a ser descoberto“, como o mar cheio de monstros que os navegadores do final do século XV um dia enfrentaram. Amedrontador e cercando todo o Museu, o mar é a própria encarnação do tempo, isolando o passado em um [quase] inacessível lugar para o qual retornar é impossível, a não ser através da lembrança. Arca Russa é a máxima exposição dessa lembrança. Filmada em um único fôlego, fluindo como o tempo, a película se sagra não apenas como um memorável tour de force técnico, mas também como uma reflexão sobre a História da Arte durante um certo período da História da Rússia. Inegavelmente uma obra dirigida por um historiador. Um dos filmes mais interessantes do início do século XXI.

Arca Russa (Russkiy kovcheg) — Rússia, Alemanha, Japão, Canadá, Finlândia, Dinamarca, 2002
Direção: Aleksandr Sokúrov
Roteiro: Aleksandr Sokúrov, Anatoli Nikiforov
Elenco: Sergey Dreyden, Mariya Kuznetsova, Leonid Mozgovoy, Leonid Mozgovoy, Mikhail Piotrovsky, David Giorgobiani, Aleksandr Chaban, Lev Eliseev, Oleg Khmelnitsky, Alla Osipenko, Artyom Strelnikov, Tamara Kurenkova, Maksim Sergeev, Natalya Nikulenko, Elena Rufanova, Yelena Spiridonova
Duração: 96 min.

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