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Crítica | As Canções

por Gabriel Carvalho
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“Nem sei porque eu chorei.”

Quem canta seus males espanta. Uma das mais famosas expressões populares, relacionada a uma das mais populares expressões artísticas, resume certeiramente o que podemos entender de As Canções, prestigiado documentário sobre, como muito bem explicita o título escolhido, canções. Os entrevistados expurgam sentimentos para além de seus corpos, tornando-os emoções absorvidas pelo ser humano fora do teatro apresentado – um palco e uma cadeira de frente ao público. As Canções, penúltima realização de Eduardo Coutinho, aclamado documentarista brasileiro, última antes de sua morte trágica – uma outra obra seria lançada postumamente -, não necessita de muita coisa além desses ingredientes. O espetacular Jogo de Cena isentava-se de grandes truques, desenvolvendo, por outro lado, uma proposta mais provocativa, sobre o encontro entre a verdade e a mentira. Uma ideia parecida é trabalhada em As Canções, sobre a interpretação de nossas próprias histórias, de nossas próprias emoções. A cadeira estava de costas à plateia. Já aqui, está onde naturalmente estaria. O espetáculo da vida para muitas pessoas. Os contadores de histórias, igualmente cantadores de histórias, tornam-se os atores, identificando os arcos dramáticos que o mundo lhes proporcionou e o impacto de acontecimentos que permearam as suas vidas. O show tem que continuar, porém, uma memória de resquícios do passado é urgente para esses seres. O grande Eduardo Coutinho os permite a libertação.

O cineasta, contudo, alcança um sentido menos metalinguístico e mais humanista – o que o cinema do autor procura ser -, auferindo uma condição dramática a essa produção, um canto de cisne para um homem que conseguiu extrair as mais belas coisas, das ingenuidades e grosserias mais puras que o ser humano possui dentro de si – estamos diante de relacionamentos amorosos problemáticos, outros maravilhosos, situações de extremo desconforto para espectadores, como a mãe que iria se suicidar, transmutando-se em um romance magnífico e ímpar, além de outras que conseguem apenas extrair sorrisos graciosos de nossos rostos. Um dos grandes momentos de Edifício Master, por exemplo, era uma interpretação de “My Way” – o poder de uma canção. A convencionalidade com que o cineasta transporta para as telas o seguinte pensamento, de reunir relatos sobre o passado, misturados com canções marcantes para vidas aleatórias, provenientes de indivíduos ricos em memórias, porém, é interessantíssima, nessa que é, provavelmente, a jornada cinematográfica mais simples que o documentarista já adentrou, com a destituição máxima de aparatos desnecessários. O homem é o centro das atenções, o que verdadeiramente importa, além da câmera, capturando-o em momentos emocionantes. Um garoto, performando uma canção que escreveu para o seu pai, é distanciado, com o plano escolhido permitindo uma cobertura integral de seu corpo, movimentando-se ao som da melodia.

Eduardo Coutinho permite liberdades para o seu documentário, sem se ater a fórmulas. O filme acompanha os passos das pessoas. Os cantos que iniciam, os cantos que terminam. Os cantos que não precisam de relatos. As narrações e as cantorias ganham camadas a mais à medida que se prolongam, como o relato apaixonado de um homem, que, enfim, se torna um relato religioso, ainda mais de adoração, em uma contraposição entre o amor nutrido pela mulher, pela “nega” que amou e ama, e o amor nutrido pelo sagrado, um pelo qual nunca “vacilaria”. Quase como um episódio à parte, que poderia ter sido facilmente cortado na edição – uma digressão -, Coutinho garante, porém, a sua permanência, para evidenciar mais traços de personalidade, complexando o que, no caso, estava sendo narrado pelo homem em questão, muito além de uma mera história. As canções são a credibilidade que os entrevistados precisam. Uma mulher, emocionadíssima, em um dos relatos cantados mais comoventes, perdendo em melodias afinadas, mas ganhando estrondosamente em termos emocionais, acaba por revelar uma canção que, antes, pertencente a um casal, como sendo do casal, acabou, mediante revelações entristecidas de um passado de traições, se tornando apenas sua, mas verdadeiramente sua. As Canções realça a relevância que as músicas possuem na vida das pessoas, sendo possuídas por elas e não possíveis de serem retiradas de seu coração, um âmbito em que não se existem direitos autorais.

As descobertas são fascinantes, não apenas para o espectador, mas para o próprio entrevistado. Eduardo Coutinho permite os “cantores”, de uma das formas mais honestas possíveis – cantando -, encontrarem a si mesmos no palco em questão, interpretando as canções com o coração mais aberto possível e redescobrindo coisas que, supostamente, estavam perdidas na mente, indecifradas e, possivelmente, nunca antes acessadas com esse grau de emoção – quando, por exemplo, um homem, contando uma história sobre a sua mãe, começa a chorar abruptamente no palco, relembrando os moldes que ela cortava e as canções que ela cantava. A mãe permanece viva, mas a memória é de um outro tempo, um tempo, naturalmente, de saudade. O choro permite uma atribuição adimensional ao valor de um relato, que seja o mais simples possível, aparentemente banal. Uma simplista exposição de sentimentos, de histórias contadas, não é o interesse de um dos grandes cineastas que o cinema brasileiro já possuiu, entretanto, o entendimento daquelas emoções e do que canções podem ser capazes de ocasionar – ao menos, marcar. Os amores amados, nunca retribuídos na mesma intensidade. As saudades que nunca poderão ser matadas nessa vida. As memórias mais longínquas, mas mais significativas. A última pessoa encerra certeiramente o longa, com a mesma intuição de descoberta, de uma canção que, enfim, se torna o fecho de ouro para uma história de sua vida, para tantas que viveu e viverá.

As Canções – Brasil, 2011
Direção: Eduardo Coutinho
Roteiro: Eduardo Coutinho
Duração: 90 min.

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