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Crítica | As Duas Inglesas e o Amor

por Luiz Santiago
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estrelas 5

Uma definição qualitativa do trabalho de qualquer artista pode causar mal estar e desavenças entre seus fãs e admiradores. Ao dizer que As Duas Inglesas e o Amor (1971), filme de François Truffaut baseado no romance de Henri-Pierre Roché é o seu melhor filme, adentramos a essa categoria de desavenças e somamos a influência do subjetivo a essa questão. Uma coisa, no entanto, é unânime entre todos os espectadores da obra: a beleza estética e o trabalho do roteiro mediante os desencontros amorosos são mais que louváveis, e por si só, já garantiriam ao filme um grandioso valor.

O título original da película, tal qual o da obra literária, As Duas Inglesas e o Continente, é bem mais sugestivo quanto ao significado simbólico da obra. Nela, temos narrada a história de Claude (Jean-Pierre Léaud), que conhece Anne, uma jovem inglesa de quem pretende tomar aulas, e a convite desta, vai ao País de Gales. Após seu encanto inicial pela bela Anne (Kika Markham), Claude passa a lidar com os sentimentos que surgem após conhecer a irmã mais nova, Muriel (Stacey Tendeter). Surgem então as sementes de um triângulo amoroso que atravessará anos e marcará para sempre a vida dos envolvidos.

Como o “continente”, Claude é a representação dos estereótipos culturais, experiências vividas, paixões e desejos. Como representantes de faces diferentes da “ilha”, Anne e Muriel possuem um valor quase sacral para o rapaz, pois que todas as atitudes das jovens atingem-no e o faz pensar, reagir ou tomar atitudes a respeito. É apenas na ilha (lugar de acesso “ritualístico”, dado apenas por voo ou navegação, uma espécie de pequeno cosmos) que Claude esboça sentimentos físicos e teóricos em relação ao amor. Sua ida ao País de Gales o despertou para um mundo até então conhecido unicamente pelo viés estereotipado do continente, incluindo a “ciência dos bordeis” e a “cartilha da vida boêmia”.

As diferenças culturais entre Claude e a família Brown são postas em segundo plano para dar lugar ao surgimento e desenvolvimento da paixão entre os três protagonistas. A aparente simetria com Jules e Jim (1962), filme também adaptado de um livro de Henri-Pierre Roché, se desfaz quando percebemos que As Duas Inglesas não amortece os choques dolorosos e não é filmado de longe, nem no espaço nem no tempo. Como o próprio diretor disse, trata-se de “um filme físico sobre o amor”, e nesse ponto, As Das Inglesas marca um novo período na carreira do cineasta onde a amargura – a mesma amargura de Adèle H. (1975) e O Quarto Verde (1978) – ganha maior destaque e a literatura, o amor desmedido e sofredor e um certo niilismo ideológico (mais passional que racional) tem lugar cativo.

No trabalho com os triângulos amorosos e o desenvolvimento da história, o diretor usou e abusou de uma técnica nuclear do cinema, a mesma que ele usara em Atirem no Pianista (1960), por uma brincadeira formal, e a mesma que ele usaria em A Noite Americana (1973) por conveniência metalinguística: a íris, aquela espécie de “olho da lente” que se fecha e abre sobre algum objeto em cena afim de lhe dar destaque. O caso de As Duas Inglesas é ainda mais especial porque o filme começa em 1899, na virada do século, e vemos o diretor trabalhar formalmente um recurso de montagem típico daquele momento do cinema. Outras experimentações narrativas, como as sobreposições, também dão indícios de uma volta à linguagem inicial da sétima arte. Esse amplo diálogo da montagem (que contou com dois profissionais) é justificado porque Truffaut remontou o filme 13 anos depois (e pouco antes de sua morte), o que resultou no acréscimo de meia hora, chegando à configuração final de 138 minutos. Ainda hoje existem as duas versões em circulação.

O apego de Truffaut para com esse filme era enorme. O badaladíssimo diretor de fotografia Néstor Almendros realizou um trabalho impressionante com a exploração do verde em suas mais diversas tonalidades e nuances, bem como do azul (com grande ajuda do também popular figurinista Gritt Magrini) e as cores opacas e mais escuras da região litorânea da Inglaterra e da cidade de Paris. Em carta a Almendros, Truffaut afirmou certa vez que este era o seu filme “mais belo visualmente”. E essa beleza nos chega através dos óculos escuros de Muriel, do pôr-do-sol defronte ao mar, dos jardins quase impressionistas de Paris e das paisagens longínquas e românticas que aparecem no decorrer da fita.

De certa forma, As Duas Inglesas é um filme duplo. Ao mesmo tempo que fala sobre o desapego, o afastamento, a renúncia do outro, é um filme que mostra o prazer do amor, o fulgor da paixão literária na passagem do século, a importância de um amor que não é nem escultura nem livro, nem pintura, nem cinema. Trata-se de um filme duro, direto e apaixonado sobre o comportamento dos enamorados frente a todas as suas paixões e sobre os vieses da vida, que podem interromper a ligação dessas afinidades eletivas, deixando para trás apenas a memória escrita, fotografada, ou presa nas lembranças daqueles que viveram para contar o que aconteceu. Mais que um filme de amor, As Duas Inglesas é um filme sobre “o primeiro e verdadeiro amor” de toda humanidade.

As Duas Inglesas e o Amor (Les deux Anglaises et le continent) — França, 1971
Direção: François Truffaut
Roteiro: François Truffaut, Jean Gruault (baseado na obra de Henri-Pierre Roché).
Elenco: Jean-Pierre Léaud, Kika Markham, Stacey Tendeter, Sylvia Marriott, Marie Mansart, Philippe Léotard, Irène Tunc, Mark Peterson, Georges Delerue, Marie Iracane
Duração: 108 min. (primeiro corte) e 138 min. (segundo corte)

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