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Crítica | As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (1972)

por Luiz Santiago
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Se o cinema de R.W. Fassbinder vinha sendo acusado de misoginia desde a sua maior projeção no cenário europeu, no início dos anos 1970 — as obras-alvo eram Os Deuses da Peste (1970), Pioneiros em Ingolstadt (1971), Whity (1971) e Precauções Diante de uma Prostituta Santa (1971) — depois do lançamento de As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant no Festival de Berlim, em junho de 1972, essa acusação virou motivo de discussão recorrente para uma porção de críticos, estudiosos das mais diversas áreas, feministas e entusiastas da representação da mulher ou da (homo)sexualidade feminina no cinema.

Foi a partir de Petra Von Kant que Fassbinder se entregou de corpo e alma aos roteiros que mostravam quase exclusivamente personagens femininas em conflito com os mais diversos ambientes dramáticos, fase de sua carreira marcada pela influência dos melodramas de Douglas Sirk que já havia, inclusive, pautado o seu filme anterior, o fantástico Comerciante das Quatro Estações (1971).

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Personificação da Amargura

Em Petra Von Kant temos o primeiro grande exercício estético e cênico de Fassbinder, que adapta com louvor a própria peça para as telonas, quase sem mudar o texto original. Na trama, Petra é uma estilista viúva e divorciada que tem uma filha em um colégio interno e uma auxiliar/serva com um comportamento emocional masoquista. Quando uma desconhecida chamada Karin entra em cena, Petra se apaixona perdidamente e isso será a sua ruína, situação deplorável que é assistida pelas outras mulheres que a rodeiam: sua serva muda Marlene, a filha Gabriele, a mãe Valerie e aquela que parece ser sua única amiga, Sidonie von Grasenabb (uma personagem-homenagem do diretor para a obra literária que ele filmaria em 1974, com o nome de Amor e Preconceito).

O ambiente em que a trama ocorre é a casa de Petra, cenário minuciosamente explorado e que cobra do elenco marcações precisas. O mesmo vale para a câmera de Michael Ballhaus, que adota aqui uma linha de movimentos econômicos, quase inacreditáveis se considerarmos o ambiente relativamente pequeno e a elegância e engenhosidade com que são executados, sempre deixando antever um cômodo adiante, um espelho ou o contraponto do diálogo em andamento… tudo isso sem quebrar a imagem-símbolo permanente da obra: uma mulher em cena ou a caminho do enquadramento que destacará o seu tormento.

No início do filme o ritmo é reticente e pouco agradável, mas felizmente essa construção se dissipa cedo e a obra só evolui a partir daí. Após a primeira entrada de Sidonie, o texto ganha força e aborda de diversas maneiras a opressão amorosa, a condição de dependência financeira e emocional e tênues relações entre as pessoas, marcadas mais pelo compromisso social do que por um verdadeiro sentimento fraterno — lembremos que o cinema de Fassbinder, desde seu curta O Pequeno Caos (1966), foi pontuado pelo pessimismo, pelo desamor e pela incapacidade das pessoas em manterem relações sem segundas intenções (para dizer o mínimo). Tudo isso cercado por um ambiente histórico em constante mudança e moralmente questionável, proposta firmada com corpo crítico já em seu primeiro longa, O Amor é Mais Frio que a Morte (1969) e que se arrastou no campo histórico/social/político até O Desespero de Veronika Voss (1982) e no campo exclusivamente humano/sexual até seu último filme, Querelle (1982).

A insatisfação com a vida e a repressão sexual estão entre os sentimentos imperativos em As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant, sentimentos que vemos agonizar na tentativa patética das personagens, especialmente Petra, em chegar a um cenário onde possam conseguir ou fingir algum prazer. As personagens buscam algo ou chegam a algum lugar trilhando um caminho cheio de amargura e sofrimentos para si e para os que estão ao seu redor, como podemos comprovar na ciranda de sublimações e dores a seguir: Karin usa Petra para se lançar no mundo da moda e volta para o marido assim que ele chega à cidade. Sidonie vive em um casamento baseado no jogo d’A Megera Domada. Gabriele tenta de todas as maneiras conseguir a atenção e o amor da mãe. Valerie fica horrorizada ao saber que a filha se apaixonou por alguém do mesmo sexo e bloqueia suas frases ácidas e gritos histéricos.

Essa temática do vampirismo social se tornará bastante complexa após a quebra do relacionamento entre Karin e Petra, não só quando a analisamos pelo viés da pulsão sexual mas também quando trazemos à tona o fator emotivo. Petra, que se mostrava um algoz para Marlene — a serva que gostava de ser maltratada — acaba amadurecendo, passa a ver o mundo e as pessoas (a primeira delas, Marlene) de uma outra forma. Mesmo que sua independência emotiva em relação a Karin não exista, um outro aspecto de sua vida foi completamente transformado. Petra enfim conheceu o seu lado humano. E como era de se esperar, sofreu por isso.

É aí que a pontualíssima música incidental entra: como um marcador dos momentos de transformação, um verdadeiro divisor de atos representados visualmente por fades pretos.

Na abertura, Smoke Gets Into Your Eyes (The Platters) introduz o quase-abandono de Petra, mas deixa em aberto a possibilidade de mudança para melhor, afinal, o pessimismo da estilista é, nesse início, apenas uma imponente máscara, uma pintura como a de Midas e Dionísio, de Nicolas Poussin, que toma conta da parede de sua casa. Sua feição e tristeza iniciais são apenas a pose fixa de velhos tempos, de uma alma marcada por uma viuvez e um divórcio, de uma vida de obrigações pouco importantes para com a família, esnobismo em relação a amigos e colegas e certo desprezo por si mesma.

Na sequência temos In My Room (The Walker Brothers), uma espécie de continuação temática do sentimento imperante no “ato” anterior. Aqui há um longo diálogo entre Petra e Karin onde o flerte se estabelece, uma precoce declaração de amor vem à tona e a câmera brinca destacando os manequins da sala — ironia fassbinderiana –, outro iingrediente simbólico a fazer par com a grande pintura de Poussin.

Quando a tragédia vem à tona e Petra encontra o seu mais baixo ponto emocional, ouvimos explodir de maneira dolorosamente irônica a ária Un dì Felice, Eterea (Giuseppe Verdi), da ópera La Traviata. Neste ponto, a direção de Fassbinder alcança o seu auge, mostrando extremo domínio do claustrofóbico espaço que tem para trabalhar e a relação operística que consegue imprimir ali. A cena expõe de maneira definitiva os closes silenciosos em Marlene através do deslocamento cuidadoso da câmera, obrigando algumas atrizes a se deslocarem estrategicamente para certos pontos do cenário e em seguida obrigando-as a se mudarem novamente (isso é que é mise-en-scène!), mas fixando Petra em um único ponto, obrigando a câmera a rodeá-la e observá-la por longos planos em ângulos diferentes.

Como no caso anterior, onde a segunda canção-ato seguia dramaticamente a primeira, temos The Great Pretender (The Platters), que fecha a saga deixando Petra sozinha, no escuro, possivelmente pronta para fingir que está tudo bem após o conflito com mãe, filha e amiga; após o rompimento com a amante  Karin e após a partida definitiva de Marlene, que de maneira muito curiosa, leva embora a “boneca-amante” que Petra recebera de aniversário.

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Outono Sentimental

À medida que os “atos” passam, vemos um destaque maior ou menor para algumas cores na tela, mas existe uma paleta outonal imperante no filme, inspirada em Tudo o que o Céu Permite, que se destaca com grande beleza durante toda a projeção. Nesta paleta temos como essenciais as cores laranja, amarelo (geralmente em tons de ouro) marrom, preto e branco – com alguns rompantes de vermelho. O curioso é que enquanto o cenário marca de maneira mais ou menos sutil o avanço dos sentimentos, os figurinos de todo o elenco e as perucas que Petra usa em cada um dos quatro “atos” servem como uma espécie de contraste de personalidades. Dentre esses blocos, o mais chocante e esteticamente admirável é o da longa sequência final, com o desespero de Petra ao som de Un dì Felice, Eterea.

As visitas que chegam uma atrás da outra usam um figurino de cores contrastantes entre si e com a atmosfera da casa, criando uma pequena variação de personalidades através de mini-paletas, correspondendo também aos sentimentos de cada um. Perceba o comportamento anacronicamente infantil de Gabriele e a roupa de estilo cartoon que ela está usando, um colete amarelo com gravata roxa, o verdadeiro símbolo da ingenuidade.

Existem apenas duas figuras masculinas em meio às mulheres no set de Petra Von Kant. A primeira é o deus Dionísio (o deus que representa o lado intoxicado do homem, o seu lado destruidor, desrespeitoso, bêbado), sempre com o sexo nu e em destaque na pintura de Poussin. A segunda, do próprio Fassbinder, que brinca com o feito de Alfred Hitchcock em Um Barco e Nove Destinos (1944) e se coloca num cameo fotográfico no jornal que Petra recebe pela manhã.

Também no campo das homenagens vale citar a declarada indicação ao longa A Malvada (1950), de Joseph Mankiewicz, que aparece como um personagem fictício, amigo de Petra, para quem Marlene datilografa uma carta lamentando um empréstimo que demoraria ser pago. E para finalizar, a belíssima homenagem feita a Persona (1966) de Ingmar Bergman, no momento em que as cabeças de Petra e Karin se cruzam como se fossem misturar-se uma com a outra e tornar-se a de uma única mulher.

Contando com um elenco de altíssima qualidade que faz um trabalho cênico para se aplaudir de pé — destaque absoluto para Margit Carstensen no papel principal – Fassbinder realiza em As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant um filme sobre desejo, poder e amor no seio da elite (ele abordaria o mesmo tema em outro espaço social no longa O Direito do Mais Forte é a Liberdade, em 1975), onde alguma coisa urgente e negativa sempre parece que está para acontecer no espaço barroco e aparentemente calmo que é a casa da personagem-título.

Essa urgência nos é apresentada pelo aborrecimento e possivelmente premeditação da tragédia vinda através do datilografar constante de Marlene (que substitui os tambores messiânicos ouvidos em A Viagem de Niklashauser). A própria personagem serve como ponto final desta fase da vida de Petra, abandonando a máquina de escrever e a presença muda em cena, deixando a patroa que antes a dominava e que de repente resolveu deixar o poder sobre ela de lado, entregue à escuridão de suas lágrimas amargas. A busca por uma nova “senhora”, para todas as personagens do longa, começa quando a luz se apaga.

As Lágrimas Amargas de Petra von Kant (Die bitteren Tränen der Petra von Kant) – Alemanha Ocidental, 1972
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Roteiro: Rainer Werner Fassbinder (adaptado de sua própria peça)
Elenco: Margit Carstensen, Hanna Schygulla, Katrin Schaake, Eva Mattes, Gisela Fackeldey, Irm Hermann
Duração: 124 min.

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