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Crítica | As Três Idades

por Marcelo Sobrinho
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“Ela lhe perguntou num daqueles dias se era verdade, como diziam as canções, que o amor tudo podia. – É verdade – respondeu ele -, mas é melhor não acreditares.”

Gabriel García Marquez, em Do Amor e Outros Demônios

Quando o político de Luzes da Cidade discursa com sua voz ininteligível, Chaplin faz uma das mais célebres e espirituosas troças do cinema falado, ainda nascendo naquela época. Nove anos se passam e eis que o grande comediante americano lança seu primeiro filme falado – O Grande Ditador, de 1940, tornando-se um baluarte também na nova era do cinema. A sétima arte deixava para trás uma grande etapa de sua história e, com ela, alguns nomes fundamentais. Um deles é Buster Keaton, outro grande comediante do cinema mudo americano, mas que não conseguiu manter-se no auge na era falada. Keaton, “o palhaço que não ri”, caiu no ostracismo e entregou-se ao álcool. Luzes da Ribalta, de 1952, recolocou-o em evidência (em sua última grande atuação) e traz a oportunidade única e imperdível de ver contracenando Charles Chaplin e Buster Keaton.

Apesar de serem frequentes, acho um tanto tolas as comparações entre os dois. Chaplin sempre fez um humor mais emocional, que encantava pela sensibilidade de seus olhares, seus gestos e seus sorrisos. O sorriso puro do adorável vagabundo na conclusão de Luzes da Cidade, que citei acima, é de arrancar lágrimas. Já Keaton emocionava e fazia gargalhar pelo timing perfeito de suas piadas (muitas são cheias de ironia) e pelas acrobacias extraordinárias de um verdadeiro atleta da comédia. Sem nenhum dublê, ele realizou algumas das sequências mais incríveis do ponto de vista técnico para um ator. Sisudo, Keaton era capaz de correr quilômetros e terminar a cena como se tivesse caminhado do quarto para a cozinha, com o semblante impassível. Dois gênios de igual talento, mas que merecem cada um o seu lugar.

As Três Idades (Three Ages, no original) é o primeiro longa-metragem de Buster Keaton e uma de suas grandes obras, lançada em 1923. Os anos 20 foram certamente os mais produtivos e importantes em sua carreira e, em um prazo relativamente curto (de 1923 a 1929), o americano filmou nada menos que 14 obras, dentre as quais está a sua melhor produção. O filme que inicia essa incrível sequência acompanha três histórias de amor, vividas em três eras diferentes da humanidade – a Pré-História, o Império Romano e a Idade Contemporânea. Keaton cumpre o que já anuncia logo no começo de seu filme – mostrar como o amor manteve-se intacto ao longo da história, sendo por isso mesmo tão humano. Karl Marx falava no conceito de “homem genérico” e o amor que Keaton apresenta vai ao encontro dessa ideia, pertencendo a todos nós, os deste e os de outros tempos.

A página de livro que surge indicando um prefácio ao filme traz com grande singeleza essa ideia. Anuncia-se que “o amor é o eixo imutável em torno do qual o mundo gira”. A partir daí, o diretor vai demonstrando as semelhanças entre diversas situações que envolvem a paixão de um homem por uma mulher em cada uma das eras. Todos os três homens são rejeitados inicialmente pelos pais de suas amadas, quer seja pela pouca força física que o primeiro possui, pela patente militar que o segundo detém ou pela posição social do terceiro. Iniciam, então, uma hilária jornada em busca da conquista amorosa. Como habitualmente ocorre nessa era do cinema, o enredo é bastante simples e cheio de uma encantadora ingenuidade.

O humor físico de Buster Keaton mais uma vez aparece com todo o seu talento. É incrível como ainda rimos, por exemplo, do salto que o terceiro homem dá no colo do garçom ao se assustar com a lagosta em seu prato. Algo que fascina nas comédias de Chaplin e de Keaton é que eles facilmente nos persuadem a crer nas situações que criam. Nada parece ensaiado ou programado, por mais que conheçamos o grau de perfeccionismo de Keaton. Tudo soa orgânico e verdadeiro. Acreditamos no pulo como se não houvesse outra possibilidade para a cena e é exatamente por isso que cenas assim funcionam tão bem, não importando quantas vezes assistimos a elas. Elas simplesmente não se desgastam.

Outro momento memorável de As Três Idades é o salto que o personagem de Buster realiza de um prédio para o outro. O que há de mais curioso nessa cena é que, na realidade, o ator errou o salto e acabou se machucando. Após semanas sem poder gravar, Keaton decidiu manter o salto tal como fora filmado, acrescentando uma sequência em que ele cai sobre alguns toldos e consegue se agarrar em um cano. A ousadia do diretor e ator é uma de suas características mais lendárias e quebrar ossos realizando estrepolias nunca foi um fato isolado em sua carreira. Ele chegou a fraturar algumas vértebras cervicais em uma queda durante as gravações de Sherlock Jr (o acidente também está registrado no próprio filme).

Buster Keaton será sempre lembrado como um dos atores e diretores mais geniais da comédia em todos os tempos. Seu senso de ironia afiado, presente na cena final de As Três Idades e seu rosto impávido em cena, acontecesse o que fosse, o transformaram em uma verdadeira lenda do cinema. Em seus filmes, ele deixa a clara mensagem de que os grandes artistas nunca estão datados. Quando caem os créditos em um de seus filmes, surgem as palavras que eternizaram essa era do cinema e que estão presentes também em sua lápide – The End. O cinema mudo se foi. Keaton também. Mas o mito sobreviveu ao tempo e o encanto que sua arte produz permanecerá por muitas gerações.

As Três Idades (Three Ages) – Estados Unidos, 1923
Direção: Buster Keaton
Roteiro: Buster Keaton
Elenco: Blanche Payson, Buster Keaton, Joe Roberts, Kewpie Morgan, Lilian Lawrence, Lionel Belmore, Margaret Leahy, Wallace Berry
Duração: 63 minutos.

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