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Crítica | Asterix e o Caldeirão

por Ritter Fan
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Asterix e o Caldeirão é sobre dinheiro. Ou sobre a ganância, substantivo que normalmente tem ligação próxima com ele. Um tema que René Goscinny usa sem medidas para criticar o governo e as pessoas em geral sem nem mesmo deixar ele próprio – e Albert Uderzo – de fora da “brincadeira”.

Amigurcix, chefe de outra tribo gaulesa, pede a Abracurcix que esconda um caldeirão cheio de sestércios em sua aldeia, já que um coletor de impostos está prestes a visitar a dele e ele quer evadir o fisco. Mesmo a contragosto, Abracurcix determina que Asterix será o responsável pelo tesouro, mas, apesar da vigilância do baixinho bigodudo, as moedas desaparecem misteriosamente na manhã seguinte. Com isso, o chefe vê-se obrigado a banir Asterix da aldeia até que ele reouvesse o dinheiro. Obelix, claro, se “auto-bane” e vai junto com seu melhor amigo.

A partir daí, a história começa a tratar das várias tentativas da dupla de conseguir dinheiro para encher o caldeirão. É interessante que Goscinny leva Asterix, primeiro, por caminhos corretos, cheios de retidão moral. Ele tenta vender javalis (para desespero do concorrente Neurastenix e de Obelix, claro, que quer comer todos os bichos), fazer truques, lutar por dinheiro, atuar no teatro, apostar em cavalos e até mesmo mendigar. Nada funciona, pois os dois simplesmente não entendem o “mundo normal”. Eles são inocentes demais, vivem da floresta ao redor de sua aldeia, não têm malícia. Mas o crescente desespero leva até ao roubo, com planejamento no melhor estilo “filme de assalto”, demonstrando que o autor quer mesmo ir até as últimas consequências para mostrar o que o homem faz por dinheiro.

Recheando o périplo de Asterix, há um mar de críticas ferinas à burocracia, à incapacidade do governo de pagar seus funcionários corretamente, ao jogo, à sana tributária do governo (leia mais abaixo sobre pecunia non olet) e, no final das contas, a nós mesmos, que tudo fazemos pelo vil – mas necessário – metal. O mero banimento de Asterix já choca, já nos sacode violentamente quase que para fora da história. Pensamos “como assim Asterix banido?”, mas Goscinny não  se faz de rogado e, em uma espiral decadente, tira tudo do pequeno gaulês, quase quebrando seu espírito completamente. Por incrível que pareça – e realmente pode ser um exagero, mas é o que sempre senti lendo e relendo essa história – Goscinny fez um álbum quase triste, que nos faz ficar compadecidos com o herói. Mas é “quase”, claro, pois há ainda um mar de piadas que não deixam pedra sobre pedra em relação aos assuntos que mencionei acima, sem se esquecer de abordar até mesmo a questão do teatro moderno em contraste com o teatro clássico

Uderzo está em casa, desenhando fundamentalmente seus gauleses, depois de fazê-los passear pela Grécia em Asterix nos Jogos Olímpicos. Seus quadros nas várias páginas dedicadas à feira de Condate são belíssimos e variados, lembrando a variedade de tipos que vimos na feira semelhante ao redor do combate dos chefes em, lógico, O Combate dos Chefes.

Asterix e o Caldeirão trata de dinheiro descortinando muitas verdades dolorosas que não queremos ver. Mas Goscinny é Goscinny: ele nos faz rir de nossa própria desgraça.

Curiosidades:

– Obelix sugere a Asterix que eles contem as histórias deles mesmos para ganhar dinheiro, mas Asterix rebate a ideia dizendo que ninguém se interessaria. A brincadeira, claro, é com os próprios autores, então já gozando de bastante dinheiro com o sucesso de suas histórias.

– Reparem os balões do coletor de impostos. Eles são formulários, uma excelente crítica visual à burocracia e à fome por impostos.

– Mais sobre o coletor de impostos: Uderzo o desenhou como uma caricatura de Valéry Giscard d’Estaing, então o ministro das fianças da França e que, depois, tornou-se presidente do país. 

– Esse é o único volume das aventuras de Asterix em que os piratas têm final feliz. Pelo menos uma vez era merecido, não?

– Esse é um dos únicos dois volumes de Asterix (o outro é O Presente de César) em que ele efetivamente usa sua espada, que está em sua cintura mais para enfeite.

– Toda a trama envolvendo o dinheiro e o cheiro de sopa de cebola que ele tem é uma alusão ao ditado latino pecunia non olet, ou, em português, “dinheiro não tem cheiro”. Isso significa que, para o fisco, pouco importa a procedência do dinheiro para fins de recolhimento do tributo. Claro!

– Latim: Quo Vadis? – “Aonde vai?”, em português.

– Latim: Ubi  Solitudinem faciunt pacem apellant. Frase dita pelo pirata mais velho no albergue “O Pirata Encalhado”. A frase é de Tacitus, senador e historiador romano do século I. Esse é apenas o trecho final, cuja frase completa é Auferre, trucidare, rapere, falsis nominibus imperium; atque, ubi solitudinem faciunt, pacem appellant. Em tradução livre ao português, significa “Saques, assassinatos, roubos, eles chamam essas coisas de império: eles fazem a desolação e chama de paz. O trecho dito pelo pirata é “eles fazem a desolação e chama de paz”, fazendo referência ao ataque de Asterix e Obelix.

– Latim: Vae Victis. Dita por um legionário que deseja receber seu soldo atrasado. A frase significa, apenas, “ai dos vencidos”, mas, para sua compreensão, há necessidade de contexto histórico. Diz a lenda que ela foi dita por Breno, chefe da tribo dos Sênones que, em 387 a.C., liderou o exército gaulês contra Roma, saqueando-a e dominando-a quase que integralmente. Os romanos, acuados, aceitaram pagar um resgate para que Breno recuasse e, então, instalou-se uma longa discussão sobre o “peso do ouro” e Breno jogou sua espada pesada na balança e disse essa frase, dando a entender que a quantidade de ouro que queria era imensa. No final das contas, a demora nas negociações permitiu que Breno, no final, fosse derrotado por Marco Fúrio Camilo.

– Latim: Ave Caesar, morituri te salutant. Frase já vista em Asterix Gladiador. Essa é a frase que os gladiadores romanos diziam antes de iniciarem as lutas, que eram até a morte. A frase pode ser traduzida como “Ave, César, aqueles que estão para morrer o saúdam”.

Locais:

Aldeia gaulesa.

– Acampamento fortificado de Petibonum.

Condate – Hoje, Rennes, na Bretanha, França.

– Menções: Arausio (Orange), Arelate (Arles), Vienna (Vienne), Roma (capital da República Romana, depois do Império Romano), Massília (Marselha) e Alexandria (então capital do Egito).

Personagens (além de Asterix e Obelix):

Abracurcix – chefe da aldeia gaulesa.

Amigurcix – chefe de outra tribo gaulesa que vem visitar Abracurcix.

Panoramix – druida da aldeia gaulesa.

Neurastenix – vendedor de javalis.

Toniacarrerus – ator de teatro.

Josecelsus – ator de teatro.

Jogodobix – apostador pilantra.

  • Crítica originalmente publicada em 21 de janeiro de 2015. Revisada e atualizada para republicação hoje, 17/06/2020, como parte da versão definitiva do Especial Asterix do Plano Crítico.

Asterix e o Caldeirão (Astérix et le Chaudron, França/Bélgica – 1969)
Roteiro: René Goscinny
Arte: Albert Uderzo
Editora original: Pilote (serializada em 1969 e lançada em formato encadernado em 1968)
Editoras no Brasil: Record (em formato encadernado)
Páginas: 50

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