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Crítica | Asterix Legionário

por Ritter Fan
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Depois de Asterix e os Normandos, uma das obras mais fracas da dupla René Goscinny e Albert Uderzo, os dois voltam à forma total com Asterix Legionário, que manda Asterix e Obelix para o norte da África como legionários romanos, literalmente no meio da chamada Segunda Guerra Civil Romana, travada por Júlio César contra Metelo Cipião. Mas o contexto histórico bastante preciso, vale lembrar, pois essa é uma das mais marcantes características das aventuras de Asterix, é apenas isso mesmo: um pano de fundo.

O importante, em Asterix Legionário, é, definitivamente, a maneira orgânica e engraçadíssima como Goscinny faz Obelix se apaixonar pela bela Falbalá, descobrir que Tragicomix, seu noivo, foi sequestrado pelos romanos e alistado à força como legionário e, finalmente, prometer que o trará de volta. Esse é o estopim para a trama, estopim esse que é muito bem trabalhado, sem pressa, sem correrias. A paixão fulminante de Obelix por Falbalá é inacreditavelmente engraçada por transformar o barrigudo herói em um completo bobalhão que não consegue falar na presença da moça (lembra muito, nesse ponto, Rajesh Koothrappali de The Big Bang Theory), derruba árvores ao tropeçar nelas (inclusive a árvore onde fica a casa do coitado do Chatotorix!) e não sabe o que presenteá-la além de um enorme menir com um laço vermelho. São momentos de perfeição no roteiro de Goscinny que qualquer leitor desejará que se perpetue até o final do álbum.

Mas, com um misto de tristeza e alegria, temos que ver a história ser impulsionada. E isso acontece no momento exato, com a dupla seguindo para Condate (atualmente Rennes) para achar Tragicomix. No entanto, eles descobrem que o rapaz já havia sido mandado para a África e são obrigados a alistarem-se como legionários romanos. Nesse ponto, Goscinny usa de toda sua argúcia histórica e faz uma mescla dos vários povos que eles apresentara em volumes anteriores e também um posterior: há um bretão (Asterix entre os Bretões), um godo (Asterix e os Godos), um egípcio (Asterix e Cleópatra) um belga (Asterix entre os Belgas) e um grego. Cada um tem suas características exacerbadas. O bretão adora qualquer comida, por pior que seja. O godo só quer saber de lutar. O grego reclama do soldo e das condições de “trabalho” o tempo todo, enquanto o belga sempre procura uma taverna para beber cerveja e o egípcio, coitado, está completamente perdido, achando que está em um hotel, somente para soltar diálogos (em hieróglifos, claro!) de cair no chão de tanto rir.

E é lógico que, para o desespero do centurião e do treinador romanos responsáveis pelos novos recrutas, a cadeia de comando é invertida completamente, com Asterix apressado, querendo chegar logo na África e literalmente fazendo o que quer, principalmente exigindo do cozinheiro do pelotão comida em profusão e não o ensopado (todo cozido junto para poupar tempo!) que só o bretão aprecia (obviamente). Com isso, Goscinny nos faz passear por suas críticas ferinas sobre o choque de culturas, sobre a burocracia (aqui, ele claramente faz referência à conhecida burocracia francesa, que só deve ser melhor do que a brasileira…), sem nunca perder a cadência ou o timing das piadas.

Albert Uderzo tem um enorme palco para mostrar toda sua técnica. Em uma pincelada só, ele reúne as mais diferentes características culturais que desenhou nos volumes anteriores em um local só. Todos os povos são retratados de maneira inteligente e cheia de referências visuais histórica ou folcloricamente corretas, sejam as roupas arquetípicas, sejam os trejeitos e as aparências. Não há nada fora do lugar, nem mesmo quando a ação muda para a África, na campanha decisiva contra Cipião que é retratado com peles de pantera por cima da farda de líder.

Asterix Legionário é mais uma obra-prima de Goscinny e Uderzo que simplesmente precisa ser lida por qualquer fã de quadrinhos. Uma cornucópia da Nona Arte que trará risadas a qualquer leitor.

Curiosidades:

– O egípcio Quadradetênis, que acha que está em um hotel gaulês em Condate, fala em hieroglifos, algo que já vimos em Asterix e Cleópatra. O que interessante, porém, é que Uderzo usa, como hieróglifos, os símbolos do famoso guia Michelin para qualificar a cadeia hoteleira e os serviços hoteleiros.

– Há menção, no meio do deserto do norte da África, a “pregar no deserto”. Seria essa uma referência bíblica?

– Os legionários mencionam “lutas fratricidas” em menção direta à Segunda Guerra Civil Romana, então em andamento.

– Latim: Cogito Ergo Sum. Frase usada como senha para entrar no acampamento de Cipião. A frase, de Descartes, filósofo e matemático francês, significa “penso, logo existo”.

– Latim: Alea Jact Est. “A sorte está lançada”. Essa frase é reputada a Júlio César (e é ele mesmo que diz no álbum).

– Latim: Quo Vadis? “Para aonde vais?”. Essa pergunta tornou-se famosa em tempos modernos em evangelho apócrifo, como a pergunta feita por Pedro a Jesus quando o primeiro, fugindo de possível crucificação, esbarra no segundo, depois da ressuscitação. A resposta de Jesus? Roman vado iterum crucifigi ou, em português, “vou para Roma ser crucificado novamente”.

– Latim: Dignus est Intrare. Usado como outra senha pelo espião gaulês de Júlio César. Expressão burlesca da peça Doente Imaginário, de Molière, que significa “é digno de entrar”.

– Latim: Quomodo Vales? Variação de “quo vadis?”, com o mesmo significado.

– Latim: Timeo Danaes et Dona Ferentes. A frase, usada apenas para confirmar que o nome de Tragicomix começa com um “T” (“T” de Timeo Danaes et Dona Ferentes?), foi retirada da Eneida, escrita por Virgílio, e faz referência ao Cavalo de Troia. A tradução é “temo os gregos (danaes) ainda quando oferecem presentes”.

Locais:

Aldeia gaulesa.

Condate – atualmente Rennes, cidade francesa na região da Bretanha.

Massília – atualmente Marselha, cidade portuária francesa, no Mediterrâneo.

Thapsus ou Tapso – atualmente Ras Dimas, na Túnisia. A Batalha de Tapso, retratada no álbum, foi a penúltima batalha da Segunda Guerra Civil Romana.

Ruspina (só mencionada) – localizada na Tunísia e palco da Batalha de Ruspina, uma das primeiras da Segunda Guerra Civil Romana.

Monastir (só mencionada) – cidade ainda hoje existente na Tunísia, com nome derivado de “monastério” em latim.

Personagens (além de Asterix e Obelix):

– Panoramix – druida gaulês.

– Falbalá – bela mulher da aldeia gaulesa que é objeto da paixão de Obelix e ciúmes de Ideiafix.

– Plantaquatix (só mencionado) – pai de Falbalá.

– Ideiafix – cachorrinho de Obelix que tem ciúmes de Falbalá, mas, com um beijo, derrete-se por ela.

– Pneumatix – carteiro.

– Tragicomix – noivo de Falbalá.

– Processus – legionário romano em Condate.

– Praçadetouros – recruta grego.

– Fogonaroupax – reruta bretão.

– Moldefix – recruta belga.

– Quimérico – recruta godo.

– Figuralegórica – recruta godo rejeitado por ser magro demais.

– Quadradetênis – recruta egípcio.

– Hotelterminus – centurião romano.

– Belicosus – instrutor romano.

– Júlio César – ditador e líder romano.

– Cipião – um dos líderes dos Optimates, os conservadores do senado romano, que causa a Segunda Guerra Civil Romana.

– Juba I (somente mencionado) – Rei da Numídia (hoje Argélia e o pedaço ocidental da Tunísia) que ficou ao lado dos republicanos contra Júlio César.

– Afrânio (somente mencionado) – Legado romano (chamado de traidor por Júlio César) que lutou ao lado de Cipião.

– HCL ou Acidocloridrix – Espião gaulês a mando de Júlio César.

  • Crítica originalmente publicada em 31 de dezembro de 2014. Revisada e atualizada para republicação hoje, 27/05/2020, como parte da versão definitiva do Especial Asterix do Plano Crítico.

Asterix Legionário (Astérix Légionnaire, França/Bélgica – 1967)
Roteiro: René Goscinny
Arte: Albert Uderzo
Editora original: Pilote (serializada em 1966 e lançada em formato encadernado em 1967)
Editoras no Brasil: Record (em formato encadernado)
Páginas: 50

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