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Crítica | Aurora (1927)

por Luiz Santiago
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Aurora foi o primeiro longa que F.W. Murnau rodou nos Estados Unidos, país para onde se mudou em 1926, a convite de William Fox, e onde realizou os quatro últimos filmes de sua carreira, Aurora (1927), Os Quatro Diabos (1928), O Pão Nosso de Cada Dia (1930) e Tabu (1931).

Com roteiro escrito por Carl Mayer (parceiro de Murnau desde O Corcunda e a Dançarina, 1920) e baseado em Viagem a Tilsit, do escritor alemão Hermann Sudermann, Aurora foi um dos filmes pioneiros em uso de som gravado direto em película + sons do ambiente e vozes (sem diálogos), um esforço que colocava Murnau não só à frente dos experimentos com imagens e forma do filme (sobreposição de takes em câmera e montagem) mas também como um dos primeiros diretores a assinar um longa de grande orçamento, com grande distribuição e que trazia a novidade do som consigo, aqui, realizado através do processo ‘Movietone’, da Fox [para expandir o tema, leia o nosso Plano Histórico: Uma Introdução ao Cinema Sonoro].

Com pleno apoio financeiro do Estúdio e liberdade artística, o diretor de Nosferatu e A Última Gargalhada não poderia fazer outra coisa senão mais um grandioso filme, também marcado por sua altíssima sensibilidade ao retratar emoções e relacionamentos humanos. Em Aurora, Murnau nos entregou um (melo)drama com diversos componentes narrativos, fazendo o espectador sentir um grande número de emoções enquanto vê o amadurecimento do casal protagonista. Neste último aspecto, o verdadeiro foco é direcionado ao homem (interpretado de maneira brilhante por George O’Brien), cujo tratamento lembra o estilo bildungsroman da literatura alemã, onde se investia no processo de desenvolvimento e maturidade emocional, psicológica e moral do personagem principal.

Podemos até nos incomodar com a nuance de moral cristã-familiar implícita no roteiro, com a forma rápida em que aparece a paixão do esposo pela mulher da cidade, com a súbita sugestão de afogar a esposa no lago ou com o caminho que o enredo trilha após a tempestade que separa o casal, mas nenhuma dessas coisas conseguem diminuir o valor e a sensibilidade que marcam o conteúdo do filme.

Como Murnau vinha de uma exigente escola cinematográfica e de um movimento bastante apreciado nos Estados Unidos (o Expressionismo Alemão), não é de se espantar que sua estreia na terra do Tio Sam misturasse as duas coisas, o apuro estético dos filmes germânicos do primeiro cinema e o caráter sombrio da fotografia junto à temática da loucura e do horror característicos do Expressionismo. No romance, esses dois ingredientes podem ser vistos no desenho de produção, nas sombras projetadas na parece, nas belíssimas sequências noturnas e no descontrole emocional do marido, que recebe do ator George O’Brien uma interpretação ideal, claramente pensada para mostrar a mudança do personagem e visualmente definida através da barba, que é retirada na tarde que ele passa com a esposa na cidade.

Janet Gaynor constrói uma personagem delicada, pouco expressiva — por ordens de Murnau, que queria mostrar através dela a simplicidade e passividade comum às camponesas do cenário que ele pretendia retratar, ou seja, a posição da mulher nesse ambiente patriarcal cujo contraste absoluto, no filme, é a mulher da cidade — e em muitas cenas nos faz lembrar Lillian Gish. É através de Gaynor que o espectador vê a delicadeza e devoção tomar conta da história e é na cativante relação dela com o esposo (a química entre a atriz e George O’Brien é absurda) que os muitos símbolos da fita nos são apresentados.

A tarde e noite pré-tempestade que os protagonistas passam juntos é o melhor momento do filme e responsável por praticamente toda a sua força estética, narrativa e emocional. A começar pela descida do bonde, quando o esposo guia a mulher em segurança até a calçada, e então se segue um grande número de momentos cuja poesia e engenhosidade de Murnau ao retratá-los simplesmente faz com que fiquem grudados na mente do espectador. Como se esquecer da fotografia do beijo? Da antológica cena do tráfego, onde vemos o casal andar pela rua como fantasmas, alheios a tudo à sua volta? Ou do parque de diversões, com direito a hilária fuga de um porquinho e uma ótima cena de dança?

As relações humanas são complexas e possuem um grande número de fases, intensidade, significados. Em Aurora, Murnau nos apresenta todas as nuances possíveis dessa realidade em um único dia. Como se aquela tarde maravilhosa fosse, na verdade, o resumo de uma vida inteira, seguida de uma tempestade e findada com um beijo na aurora de uma manhã. Um novo dia começava para o casal do filme. A esperança de uma vida melhor estava semeada… É com essa mensagem que ficamos após o término do longa e percebemos que “o novo começo” também se dava na realidade. Aurora marcava uma nova fase na carreira de Murnau e o diretor sabia que o filme era parte de um novo momento do cinema. Pois é. Aurora nasceu como obra especial por dentro e por fora. E depois de assisti-la, chegamos à conclusão de que ela permanece assim até os nossos dias.

Aurora (Sunrise: A Song of Two Humans) — EUA, 1927
Direção: F.W. Murnau
Roteiro: Carl Mayer (baseado em um tema de Hermann Sudermann)
Elenco: George O’Brien, Janet Gaynor, Margaret Livingston, Bodil Rosing, J. Farrell MacDonald, Ralph Sipperly, Jane Winton, Arthur Housman, Eddie Boland, Vondell Darr
Duração: 94 min.

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