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Crítica | Bastardos Inglórios

por Ritter Fan
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estrelas 5,0

  • spoilers.

Quentin Tarantino é, seguramente, o maior diretor pop que existe e, não tenho dúvidas em afirmar, um dos grandes diretores do cinema moderno. Seus clássicos Cães de Aluguel e Pulp Fiction são filmes com lugares garantidos na História do Cinema. Os dois Kill Bill mostram a versatilidade de Tarantino em misturar gêneros, dos filmes de kung-fu trash da década de 60 e 70 até os westerns spaghetti. A capacidade do diretor em criar diálogos e dirigir atores é algo fora do comum. Ok, é bem verdade que alguns detratores dizem que ele simplesmente copia outros filmes. É verdade, sem dúvida. Mas inspirar-se (não copiar) vários filmes ao mesmo tempo, misturando-os em uma história só ao ponto de imprimir-lhes vida própria, personalidade própria, poucos conseguem fazer, e Quentin Tarantino é um dos que fazem isso de maneira mais eficiente. Mesmo seu filme tido como o mais fraco – em minha opinião À Prova de Morte –  é acima da média do que vemos por aí, demonstrando um grande controle de câmera, montagem, roteiro e trilha sonora, além da enorme capacidade da construção de um gigantesco e riquíssimo universo próprio a cada quadro que vemos na tela.

Bastardos Inglórios é a primeira tentativa do cineasta em trabalhar um filme verdadeiramente de época. Poder-se-ia dizer que o injustamente subestimado Jackie Brown é quase um filme de época, por passar-se, em espírito, na década de 70. No entanto, o 7º filme (ou 6º, se contarmos como o cineasta) de Tarantino é o primeiro a verdadeiramente passar-se em outra época, mais precisamente durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, quando achamos que o diretor está preso pelos acontecimentos históricos – afinal, mudar a História é um sacrilégio, não? – ele vem e nos dá uma incrível rasteira, daquelas que você realmente não espera e que te deixa estatelado no chão. Revendo a fita mais uma vez para escrever essa crítica, chego a perguntar-me se, mesmo diante de tantas obras-primas, Bastardos Inglórios não seria o ápice da carreira do diretor.

Peguem o primeiro capítulo do filme. Em um belo plano geral estático que aos poucos se aproxima, vemos uma bucólica paisagem na França, com um homem de barba cortando lenha e três garotas por perto de uma modesta casa. O homem é avisado por uma de suas filhas que alguém está chegando e ele pede água para lavar o rosto. O diálogo é todo travado em francês e, quando o simpaticíssimo Coronel da SS Hans Landa (Christoph Waltz) se apresenta ao fazendeiro Perrier LaPadite (Denis Ménochet), a língua regente continua sendo o francês. Já dentro da modesta casa, o coronel, sempre muito cordial, pede leite, tece elogios à família de LaPadite e ao produto das vacas do fazendeiro e pede licença para trocar para o inglês, sob a desculpa de que chegou ao limite de seu francês e pelo fato de saber que o homem tem comando da outra língua. Em seguida, aprendemos que Landa é conhecido como Caçador de Judeus e que está lá para fazer um burocrático trabalho de double check, já que uma família judia da região (os Dreyfuss) não haviam sido encontrados pelas forças nazistas em uma primeira varredura. O que segue – e sinto-me até envergonhado em escrever isso – é a mais simpática antecipação de um massacre já colocada nas telas do cinema e o horror que Tarantino deixa evidente para nós é exatamente a construção que ele fez da cena, que nos impede de, imediatamente, odiar o inteligentíssimo personagem vivido por Waltz. Sim, claro, sentimos a tristeza de LaPadite, que é forçado a entregar a família que esconde embaixo de sua casa e sim, sofremos ao ver o que está prestes a acontecer e a tensão quando notamos que Shosanna Dreyfuss (Mélanie Laurent) escapou, mas que está na mira de Landa.

Só que Tarantino sabe que fazer a audiência simpatizar com um genocida nazista é, no mínimo, um golpe baixo e, sem perder tempo, nos retira daquele universo e nos sacode novamente para o sentimento normal: ódio aos nazistas. O capítulo seguinte abre com o Tenente Aldo Raine (Brad Pitt), um caipira americano com uma enorme e completamente inexplicada cicatriz no pescoço, fazendo um excelente discurso a seus novos recrutas. Ele diz que irão para a França, atrás das linhas inimigas, aterrorizar os nazistas e que cada um deles tem que literalmente trazer de volta 100 escalpos dos inimigos.

Descrevi as duas cenas para que o leitor possa relembrar – pois presumo que todos já viram esse filme e, se não viram, deveriam parar agora e assistir – como Tarantino nos manipula. Eles nos faz testemunhar um estarrecedor massacre depois de nos apresentar ao mais “bacana” dos nazistas e, imediatamente depois, sem pestanejar, nos faz acordar do pesadelo incongruente e nos coloca com os dois pés firmes na realidade. No entanto, nos dois momentos, também testemunhamos, talvez mais intensamente do que em qualquer outro filme do diretor e roteirista, sua habilidade de criar mundos com alguns breves diálogos. Quando Landa senta à mesa com LaPadite,  tecnicamente não conhecemos nenhum dos dois, mas não muito dificilmente começamos a perceber que há uma grande história por trás de cada um deles. Fica evidente que Landa, se não fosse um nazista assassino, ou seria um serial killer no estilo de Hannibal Lecter ou seria a versão austríaca de Sherlock Holmes. Captamos que LaPadite é um homem sofrido, com um terrível segredo. Mas também notamos que sua esposa não está na casa. Morreu, fugiu de casa ou está somente no vilarejo comprando mantimentos? Como ele foi capaz de esconder uma família de cinco pessoas em sua microscópica casa. O mesmo vale para a sequência com Aldo Raine. Que cicatriz é aquela? De onde exatamente vem essa raiva dos alemães? Como ele iniciou essa tropa secreta de escalpeladores? Toda as perguntas ficam sem resposta e todas as respostas são possíveis.

E isso se aplica em todas as cenas posteriores do filme, quando somos apresentados a intrigantes personagens como o Sargento Donny Donnowitz (Eli Roth), conhecido como Bearjew, ou Urso Judeu, e cuja especialidade é esmagar crânios nazistas com um taco de beisebol, o tenente britânico Archie Hicox (Michael Fassbender), crítico de cinema especializado na filmografia alemã dos anos 20, Bridget von Hammersmark (Diane Kruger), atriz alemã que trabalha como espiã para os britânicos e mais uma infinidade de outros, includindo, claro, Shosanna, que reaparece disfarçada de proprietária de um cinema em Paris onde acontecerá a première do filme alemão O Orgulho da Nação e, também, o incendiário clímax do filme, um massacre que, esse sim, dá gosto de dizer que é sensacional. No meio disso tudo, Tarantino ainda aproveita para satirizar a lendária (e nem sempre verdadeira) incapacidade dos americanos de falar outra língua que não seja o inglês (a cena em que Aldo Raine “fala italiano” é absolutamente impagável) e, também, para dar uma boa alfinetada na indústria de Hollywood, na cena em que Shosanna, em conversa com o soldado-herói Fredrick Zoller (Daniel Brühl), diz que os franceses respeitam os diretores, mesmo os alemães.

Tarantino, de forma brilhante, optou pelo uso caricato de seus personagens: Mélanie Laurent faz uma francesa blasé, Brad Pitt faz um soldado “super”-sulista, os ingleses são, todos, digamos “ingleses” e por aí vai. O objetivo disso talvez tenha sido criar um palco para Christoph Waltz, um brilhante ator que o diretor revelou para o mundo. Ele é tão bom nesse seu papel que, apesar de ser diabolicamente mau, é impossível não torcer por ele. A profundidade do personagem, claro ajudado pelos sensacionais diálogos de Tarantino, já o torna, automaticamente, um clássico. A facilidade com que Waltz pula de uma língua para outra, absorvendo até os trejeitos dos nativos do país, o separam das celebridades que vemos por aí que, quando falam em algum língua que não seja a sua de nascença, ou o fazem com um horrendo sotaque, ou são muito limitados pois se restringem a despejar diante da câmera aquilo que acabaram de decorar.

Mas não poderia encerrar meus comentários sem falar do amor de Tarantino pelo cinema, algo que já havia ficado absolutamente claro em suas outras obras, notadamente no dois Kill Bill, mas que, em Bastardos Inglórios, ganha contornos especiais. Seus filmes são todos homenagens a diversos estilos cinematográficos e a grandes – e pequenas – obras da Sétima Arte. Bastardos Inglórios faz referências a westerns de John Ford e de Sergio Leone e a filmes de guerra como 12 Condenados, tem seu título retirado da versão em inglês do filme italiano Quel Maledetto Treno Blindatto, de 1978, tem inspirações do cinema francês. Além disso, se despirmos o filme do seu mote de vingança, temos uma produção que é sobre a estréia de um outro filme, feito pela UFA de Goebbels (Sylvester Groth) e tendo com um dos principais personagens uma atriz alemã que é espiã dos ingleses e outra que é dona de um cinema (Shosanna). Além disso, há menções a Leni Riefenstahl, Pabst, o ator Hilmar Eichhorn faz uma ponta como Emil Jannings, ator suíço radicado na Alemanha que foi o primeiro a ganhar um Oscar de melhor ator, mas que, infelizmente, foi para o lado sombrio e participou de vários filmes de propaganda nazista. Há, ainda, atores famosos fazendo pequenas pontas, como Mike Myers para ficar no mais óbvio e Rod Taylor (do clássico A Máquina do Tempo que, para mim, significa a piscadela de Tarantino para a criação de uma “linha temporal alternativa”) para citar o mais obscuro, além de dois atores tarantinescos que emprestam apenas suas vozes ao filme.

Todos os aspectos acima fazem de Bastardos Inglórios uma espécie de filme metalinguístico, com um roteiro que quase torna seus personagens auto-conscientes que estão em uma película. Essa não é uma dedução direta nem imediata, mas a soma do fatores – um tenente crítico, uma espiã atriz, uma protagonista dona de cinema, um antagonista ator de cinema, a presença constante da UFA de Goebbels (e do próprio) – não resultam em outra coisa que não um filme que sabe que é um filme, uma ficção que olha para o espectador e quebra a quarta parede indiretamente, que nos tira da imersão na narrativa para “denunciar” que o que estamos vendo é um filme. O que antes era uma mescla de estilos e gêneros pelas hábeis lentes do diretor torna-se um diálogo ousado com o espectador, um desafio constante para que ultrapassemos a narrativa facilmente aparente e mergulhemos em uma obra bem mais complexa, bem mais instigante, mas isso só acontecerá se o espectador parar para observar e se ele for curioso o suficiente para investigar as menções salpicadas aqui e ali por toda a fita. Afinal, se não houver conhecimento – prévio ou obtido posteriormente – sobre o que exatamente é O Inferno Branco do Piz Palü, filme citado não uma, mas duas vezes em Bastardos Inglórios e exatamente porque ele é utilizado por Tarantino, dentre diversos outros aspectos e referências, essa camada mais profunda da película será perdida e um pouco da riqueza do que vemos na tela deixará de vir à tona.

Bastardos Inglórios é imperdível e não só reitera a versatilidade de Tarantino, como, também, representa mais um degrau em sua escada diretorial. Se é o mais alto, talvez só depois, olhando para trás para o conjunto de sua carreira, sejamos capazes de determinar.

  • Crítica originalmente publicada em 04 de janeiro de 2016. Alterada para republicação hoje, 10/08/19.

Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds, EUA/Alemanha – 2009)
Direção: Quentin Tarantino
Roteiro: Quentin Tarantino
Elenco: Brad Pitt, Mélanie Laurent, Christoph Waltz, Eli Roth, Michael Fassbender, Diane Kruger, Daniel Brühl, Til Schweiger, Gedeon Burkhard, Jacky Ido, B.J. Novak, Omar Doom, Martin Wuttke, Sylvester Groth, Denis Ménochet, Mike Myers, Julie Dreyfus, Richard Sammel, Rod Taylor, Hilmar Eichhorn
Duração: 153 min.

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