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Crítica | Beasts of No Nation

por Luiz Santiago
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estrelas 4,5

Primeiro longa-metragem original do NetflixBeasts of No Nation (2015) já fez a sua estreia com polêmica. Disponibilizado pela empresa em serviço de streaming e em alguns cinemas dos Estados Unidos e Reino Unido, a obra foi recebida com boicote por algumas das principais distribuidoras do mundo (Cinemark, AMC, Regal e Carmike), que alegaram que este modelo prejudica a venda de ingressos. Se, todavia, os próximos filmes o Netflix tiverem a mesma qualidade de Beasts of No Nation, as grandes distribuidoras vão ter que dar o braço a torcer ou engolir seco um baita concorrente.

Escrito e dirigido por Cary Joji Fukunaga, o longa é baseado na obra do escritor Uzodinma Iweala e acompanha o desenrolar de uma guerra civil em algum país da costa oeste africana. A trama destaca inicialmente o garoto Agu (Abraham Attah em uma interpretação estonteante) e sua família, que vivem em uma área protegida pelo Exército, impedindo o avanço dos paramilitares na região. Flashes da infância de Agu nos são mostrados e já algumas dificuldades aparecem posto que ele sua família estão vivendo em uma região de guerra. O formato de narração em off deixa claro ao espectador quem irá guiar os pensamentos e o olhar do filme, o que nos deixa preparados para algumas escolhas feitas pelo diretor.

Chama a atenção a forma de passar o tempo que os “refugiados em seu próprio país” encontram para se divertir. Crianças criativas (a sequência da “TV da imaginação” é encantadora!) e uma família de convivência saudável, mas não sem problemas, nos são apresentados e o roteiro evita a todo custo fazer uma caracterização estereotipada da cultura africana ou revisitar ou as marcações de ‘selvageria’, ‘atraso’ ou ‘exercício exótico’ da religião e dos costumes locais. Nós vemos um país em guerra e crianças, adolescentes, jovens e adultos tentando sobreviver. E isso é tudo.

O ponto de ruptura vem quando a vila é invadida e a família é forçada a se separar. O texto elenca a tragédia de forma a nos fazer entender futuras motivações para a luta e a vontade de vingança, não só para Agu mas para as outras crianças do Exército criado e guiado pelo Comandante vivido por Idris Elba. Já aí temos um outro momento do filme, onde os personagens são engolidos pela natureza e, com fortes contrastes fotográficos, pela extrema violência que eles mesmos protagonizam. A relação entre espaço geográfico (as locações em Gana são excelentes e muito bem aproveitadas) e a história narrada se alterna entre contraste, simbolismo e complemento estético-narrativo, basta observarmos o teor mais ou menos místico que essa natureza tem no início (me lembrou um pouco a mesma relação entre homem-e-natureza vistos no longa O Último Voo do Flamingo ou mesmo nos livros do moçambicano Mia Couto, Antes de Nascer o Mundo e A Confissão da Leoa) e, mais adiante, a forma como ela é “dessacralizada” e “maculada” pelo treinamento de crianças para a guerra, ou pela própria guerra, uma abordagem que sempre se mostra interessante dentro da cultura africana, vide o mesmo modelo do cineasta senegalês Ousmane Sembène em seu excelente Emitaï (1971). As fortes exposições de luz, tons claros e montagem um pouco mais lenta marcam essa segunda parte de Beasts of No Nation, que é uma preparação para as batalhas que virão a seguir.

E novamente o espectador preciosa se readequar. Desta vez, à mobilidade da câmera, à tendência road que o texto imprime à caminhada dos revolucionários e às migalhas ideológicas do discurso do Comandante, que até então não tinha deixado muito claras as suas intenções. Idris Elba fornece todo o cinismo que esse tipo de personagem precisa para convencer e claramente nos faz perceber que ele está mentindo ou escondendo alguma coisa. Os meandros políticos de uma guerra que até então parecia estar “no automático” surgem com toda a sua contradição, estupidez e discurso de ódio, algo não muito diferente daquilo que as guerras ideológicas, com ou sem armas, costumam fazer. E junto a isso aparecem os desvios e “segredos” de um caráter duvidoso da parte de alguém no poder, como vemos na abominável sequência entre o Comandante e Agu.

A cena das batalhas, que podem parecer longas demais para alguns espectadores, me deixou um pouco assutado. Para mim, o filme se enveredaria pelo caminho da guerra e por ali ficaria, sem maiores justificativas ou fechamento do ciclo “civil” que o roteiro de Fukunaga nos trouxe desde o começo. Mas o diretor, com a mesma maestria com que guiou os atores e fez uso do espaço geográfico para ajudar a contar sua história, prepara o fechamento do ciclo em vários atalhos: o da frustração do patriotismo e ideologia de defesa de uma nação que está nas mãos daqueles que sabem negociar o preço da vida humana; do descontentamento surgido dentro dos grupos rebeldes; da decadência de um senhor da guerra e aparente queda de uma ideia… para então perceber-se que, uma vez plantada, sua semente jamais morrerá.

O desfecho de Beasts of No Nation é uma sequência daquela dor familiar que sentimos na primeira metade do filme. O excelente texto de Fukunaga nos força a observar os momentos finais de uma épica jornada e as consequências que uma pessoa precisa enfrentar, após perder tudo, para conseguir continuar vivendo. Nos perguntamos se muitos se entregam à guerra porque não conseguem parar de pensar nela e a frase dita pelo garoto ecoa, juntamente com o mesmo lamento de uma trilha sonora emotiva: a única forma de deixar de lutar é morrendo.

O filme discute as muitas faces da humanidade, o que move cada um para suas causas e guerras particulares, o desejo de vingança a todo custo, o tempo e as condições adversas que fazem qualquer um questionar suas crenças, seu estilo de vida e o que querem para si e para o seu mundo alguns anos no futuro. Já fazia um tempinho que eu não via um filme de guerra com uma abordagem tão profunda. E mais tempo fazia desde que eu não via uma performance infantil tão sensacional. O Netflix entrou no mundo do cinema com o pé direito. Beasts of No Nation é certamente um dos grandes filmes de 2015.

Beasts of No Nation (Estados Unidos, 2015)
Direção: Cary Joji Fukunaga
Roteiro: Cary Joji Fukunaga (baseado na obra de Uzodinma Iweala)
Elenco: Idris Elba, Abraham Attah, Emmanuel Affadzi, Ricky Adelayitor, Andrew Adote, Vera Nyarkoah Antwi, Ama K. Abebrese, Kobina Amissah-Sam, Francis Weddey
Duração: 137 min.

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