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Crítica | Blablablá (1968)

por Luiz Santiago
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Bla-Bla-Bla plano critico paulo gracindo

 

[…] Não há mais condições de manter a ordem a não ser pela força. Eu quero ordem! Vou atacá-los de todas as direções! É preciso ver, entender que com o agravamento da situação, eu cheguei à conclusão de que a luta armada é o único caminho. O que é que vocês querem? Agi de acordo com a minha consciência e assumo toda a responsabilidade dos meus atos. […] Uso e vou continuar usando os mesmos meios do governo anterior. Proíbo as manifestações! Vocês pensam que descobriram a liberdade? Eu restaurei o respeito e o temor ao poder! Eu botei vocês novamente no mapa!!!

 O Ditador

O chamado Cinema Marginal Brasileiro floresceu na década de 1960, paralelo ao Cinema Novo da “câmera na mão e ideia na cabeça”, mas alcançou força, de fato, apenas ao fim da década, quando a corrente da qual Glauber Rocha era o grande representante começou a declinar — exatamente após 13 de dezembro de 1968, com a instituição do AI-5 e o arrochamento da censura.

Por “Cinema Marginal”, podemos entender a produção cinematográfica brasileira entre 1968 e cerca de 1975 (ou, numa versão estendida, até 1987), que era avessa à poética árida, engajada e filosófica do Cinema Novo, que não tinha a “estética limpa” como norte e que trazia diversos elementos da cultura de massa e do próprio cinema para constituir seus produtos. Jean-Luc Godard e Orson Welles eram referências caras aos cineastas do período, bem como a dinâmica das chanchadas (repudiadas pelo Cinema Novo), os fatos do cotidiano, os “pecados” e costumes dos cidadãos; o sexo, a criminalidade, o macabro. Vê-se, portanto, que o caráter “devorador de culturas”, antropofágico, foram a essência dessa corrente de produção, cujos polos ficavam em São Paulo e Rio de Janeiro.

Embora houvessem características próximas entre as produções marginais (mais marginais porque de sua distribuição dificílima do que por sua qualidade), cada cineasta conseguiu imprimir às películas sua assinatura artística. Um bom exemplo, é o caso do ator e cineasta paulistano José Mojica Marins, criador do personagem Zé do Caixão. O cineasta foi o único no Brasil que conseguiu explorar com crescente originalidade a temática do horror. Filmes de sua primeira fase como À Meia-Noite Levarei Sua Alma (1964), Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver (1966, continuação da história do filme anterior) e O Estranho Mundo de Zé do Caixão (1967) são exemplos inquestionáveis de autoria cinematográfica, mas com o toque grotesco típico de quem não se preocupa em mostrar o realismo da bela fotografia ou tem intenção em planificar, angular e compor o filme com esmero clássico. Outros títulos também demonstram as abordagens muito particulares de cada “cineasta marginal” para os mais diversos temas: O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968), Matou a Família e Foi ao Cinema (Júlio Bressane, 1969), Bang Bang (Andrea Tonacci, 1971), Jardim da Guerra (Neville D’Almeida, 1970) e A Margem (Ozualdo Candeias, 1967).

Tornou-se uma convenção (errônea, diga-se de passagem) chamar os filmes do Cinema Marginal de apolíticos e sem preocupação com a sociedade que era cada vez mais asfixiada pelos militares que governaram o Brasil no período: Castelo Branco (1964 – 1967), Costa e Silva (1967 – 1969), e Emílio G. Médici (1969 – 1974). Todavia, Se analisarmos com atenção os filmes do Cinema Marginal, encontraremos inúmeras críticas à sociedade, ao poder, ridicularizações do cotidiano, ironia revestida de humor negro, etc., como é o caso deste excelente curta-metragem Blá, Blá, Blá (1975), de Andrea Tonacci. O filme é o pronunciamento público, em rede de televisão nacional, feito pelo Ditador de um país. Alternando momentos de calmaria depressiva e explosões de ira contra as guerrilhas urbanas, o Ditador faz um discurso que se encaixa muito bem no Brasil da época e infelizmente em diversos meandros políticos da nação, mesmo após a redemocratização em 1985. Em sua fala,  percebemos o enaltecimento da guerra, a promessa de repressão mais dura, o respeito às instituições, aos “valores familiares” e, principalmente, ao poder.

Andrea Tonacci foi um dos cineastas marginais que menos se enquadrou no movimento por seu primor estético, comparado a muitas outras obras marginais. Já é possível notar isso no primeiro curta do diretor, Olho Por Olho (1966), principalmente na montagem e na narrativa — os cineastas marginais nunca foram fãs da linearidade ou teatralidade dramática no cinema. Em Blá, Blá, Blá, Tonacci experimenta de modo menos caótico. O produto que consegue, além de ser estruturado em um tema político, reserva para o espectador uma experiência única, com narrativa paralela, construção e manipulação da história através do som e da imagem (no primeiro ponto, nos faz lembrar de A Conversação, 1974, de Francis Ford Coppola) e em tudo isso, o destaque do elemento cênico mais volúvel do filme, o Ditador protagonista, louvavelmente interpretado por Paulo Gracindo.

Já no início do curta percebemos tratar-se de uma obra metalinguística, porque revela os bastidores, os testes de som, a preparação para o pronunciamento do líder. A montagem visita com urgência o espaço das câmeras, filmando o Ditador de diversos ângulos e planos; e também visita o Estúdio e detalha com pequenos planos, partes da mesa de som e seus operadores em serviço. Mas se temos dois espaços cênicos iniciais, também temos duas realidades que se constroem. Por um lado, no discurso do Ditador, um novo país se ergue… um país governado com mais rigidez, um país que perturba o Ditador com manifestações no interior e nas grandes cidades, que agora vê o encrudescimento do Regime como represália à luta revolucionária. Por outro, temos os erros de gravação, a modulação do som, os cortes técnicos, a microfonia e os momentos de confissão do Ditador perante as câmeras. Eis o motivo pelo qual é impossível enquadrar o curta em um gênero específico, porque ele foge de toda e qualquer convenção fixa.

A opção do diretor em usar as montagens dialética e paralela deu ao filme um tom de cáustica ironia e amargurada esperança. Há momentos em que é impossível não rir, tal o efeito gerado pela contraposição de imagens; mas também há momentos em que o discurso do Ditador não condiz em nada com as cenas mostradas pela televisão, o que põe em dúvida toda a veracidade de seu pronunciamento. Resultado: uma avalanche de material crítico que nos permite diversas interpretações quanto ao uso ou intenções do cineasta – algo que acontece com mais evidência em Bang Bang. A única opção infeliz do diretor foi a narrativa paralela “alheia” ao discurso e seu espaço cênico. Trata-se de uma guerrilheira latina que caminha nas águas de um rio com um fotógrafo, e fala sobre revolução, armas, e mudança política e social.

O mesmo não acontece com a personagem da cidade, que também em história paralela, fala sobre destituição do governo e perpassa a história pregressa de grupos políticos no país. Identifiquei que a diferença entre os dois espaços das narrativas é a grande responsável por uma ser eficaz no plano dramático, e outra não. É que a cena da cidade, filmada em cima de um viaduto, aproxima-se do ambiente urbano, dos planos-sequências iniciais, havendo aí uma ligação tonal (o burburinho da cidade, os prédios, o estúdio de TV, etc.) com o restante da fita. Já a cena da guerrilheira e do fotógrafo é no campo, algo que foge do cenário-base posto e trabalhado durante a maior parte da projeção. Talvez o que minimize o impacto desse deslize cenográfico seja a intenção do diretor em mostrar não só a visão revolucionária da cidade, como também a de outro espaço geográfico. O problema, portanto, não é a temática, é a relevância dramática de um e outro bloco.

Os trabalhos de manipulação de depoimentos (às entrevistas com alguns soldados o diretor acrescentou em dublagem pessoas “conversando blábláblá”…), do som, cujo uso é simplesmente espetacular e da montagem que suscita dúvidas e incita a revolta, fazem de Blá, Blá, Blá, um curta marginal de teor político explícito e que termina deixando para o público decidir o futuro do protagonista, que depois de um desabafo lancinante em frente às câmeras, com um regresso de ideais e a demonstração de fraqueza e impotência diante do poder popular, vê a televisão que o focava em primeiríssimo plano, sair do ar. No fim, todos parecem fora da realidade. Mas em lutas políticas, os cargos, os postos e as vozes nunca ficam vagos. A questão é: alguém novo irá assumir o lugar ou o Ditador manterá (direta ou indiretamente) o seu controle pleno das massas e dos setores que compõem o Estado e controlam o povo? Eis aí o grande dilema não só das ditaduras. A História do Brasil está aí para qualquer um comprovar.

Bla, Bla, Blá (Brasil, 1975)
Direção: Andrea Tonacci
Roteiro: Andrea Tonacci
Elenco: Paulo Gracindo, Irma Alvarez, Nelson Xavier
Duração: 26min.

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