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Crítica | Boa Noite, Mamãe

por Luiz Santiago
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SPOILERS!

Dois garotos de 9 anos, Lukas e Elias (que aliás são os nomes reais dos atores gêmeos que os interpretam) vivem em uma casa isolada, próxima a um milharal, e esperam o retorno da mãe, que foi submetida a cirurgias plásticas faciais por conta de um acidente. A pós o seu retorno e a estranheza que os garotos sentem em relação a ela, o impasse que nem a sinopse e nem o trailer do filme escondem surge para nós em densa atmosfera de terror, simbolismos e sugestões: aquela mulher é mesmo a mãe deles?

Dirigido por Severin Fiala e Veronika FranzBoa Noite, Mamãe (2014) está na contramão do modelo mais conhecido e continuamente rebatido no cinema de terror, que é a construção do medo pelo uso pesado da trilha sonora, por um número enlouquecedor de gritos e torturas, sangue, mutilação, demônios e afins. É certo que em alguns casos esses elementos, se bem conduzidos, podem gerar boas obras, mas não é assim para a maioria dos casos. E mais difícil ainda é encontrar películas de terror que se despem dessa cartilha e abraçam algo mais minimalista para erguer uma situação que realmente perturba e impressiona o espectador. Este é o caso de Boa Noite, Mamãe.

Os diretores tomam tempo para estabelecer todas as características do espaço cênico — a casa, predominantemente –, dando a oportunidade de cada setor técnico apresentar de maneira quase isolada a sua contribuição para o mistério e, ao mesmo tempo e em conjunto, pavimentar dois caminhos de julgamento que aparecerão para o espectador quando as atitudes “estranhas” da mãe começam a ficar evidentes e quando o sofrimento e cativeiro dos filhos criar um sentimento de raiva, desconfiança e vontade de vingança: quem está com a razão e quem deve ser defendido? O desprezo da mãe por Lukas, o isolamento da casa e a ausência de outros personagens em cena servem para criar um ambiente ao qual somos obrigados a lidar como se fossem nossos, desde as sombras de figuras femininas como decoração nas paredes (visão dos filhos para a “nova mãe”) até a melancolia e medo que as cores frias e a predominante pouca iluminação da fotografia nos sugerem.

Embora esse maior tempo seja necessário para a proposta e, no final, faça muito mais sentido, a primeira parte do filme não deixa de dar um pequeno empurrão de afastamento no público, ação que infelizmente se repete com o isolamento da vila, bem mais adiante no filme, aonde os garotos vão buscar ajuda do padre. E exceto o sacristão e um tubista que anda tocando e gritando pela rua, não há viva alma por ali. A conclusão final de que tudo pode ser uma ilusão, um truque dos diretores para mostrar o ponto de vista perturbado de Elias, que parece ver apenas aquilo que ele quer — ou talvez esse isolamento seja apenas a forma como ele se vê no mundo ou como ele vê o mundo ao seu redor — pode servir de ajuda para aceitar essas escolhas dos cineastas, mas certamente não tiram o considerável impacto negativo que tem sobre nós, fazendo-nos colocar em pauta questões de verossimilhança baseadas no próprio roteiro (o divórcio, uma maior exploração para o acidente, com quem Elias ficou todo esse tempo…) e que não precisavam acontecer.

Mesmo assim, o público consegue facilmente deixar esses incômodos de lado pela força do roteiro e pela curiosidade que essa relação entre mãe e filhos nos deixa. O conflito aqui é dividido em força física e psicológica, além de perturbações, medo e alucinações dos dois personagens vivos, Elias e a Mãe, tendo Lukas como um forte, porém ameaçador elo de ligação. A parti daí, a câmera foca os personagens motivados por suas emoções com um número bem maior de pequenos planos — embora isso nunca seja predominante, porque a direção não poderia abandonar a impressão de isolamento deles no cenário, pontos pequenos perdidos em um grande espaço — e vai colocando pistas pelo caminho, como o sonho que Elias tem da mãe indo para a floresta e, nua, tirando os curativos do rosto e tendo um estilizado colapso nervoso.

Esse tipo de cena não é novo em filmes de terror, mas aqui que serve para nos dar uma informação importante: se Elias sonha com isso e a partir daí passa a desconfiar ainda mais da mãe, nós devemos questionar pelo menos um pouco a sua impressão de mundo. Como a essa altura do campeonato não sabemos que Lukas está morto — algo que também não é novo, vide ótimos exemplos dessa interação entre mortos e vivos em Os Outros e O Sexto Sentido –, ficamos em uma posição difícil para julgar, mas o miolo do filme nos faz desconfiar, pouco a pouco, das atitudes de cada um, momento que coincide com a aparição da mãe recuperada, sem curativos e propondo uma nova amizade aos garotos. A interpretação de Lukas e Elias Schwarz começa a crescer grandiosamente a partir desse ponto e nos impressionamos pela ligação, troca de olhares, hesitações e interação entre os irmãos, dando uma incomparável força aos seus personagens. Mais adiante, quando o aprisionamento e tortura da mãe vierem, o espectador também será colocado por esses dois meninos em um cativeiro de horror e sadismo, transitando entre o lado e a dúvida dos irmãos e a degradante situação a que a mãe é exposta.

Em pontos diferentes do filme o público é confundido e depois indiretamente informado sobre a verdadeira natureza de todos em cena. Achamos suspeito a mãe não acertar o jogo de “quem sou eu?” mesmo depois de pistas tão evidentes. A pergunta é imediata: essa mulher é a mãe dos garotos? Depois percebemos que é interessante o fato de Lukas nunca interagir com personagens que não seja Elias e a Mãe (depois descobrimos que a ela fazia um “jogo de acreditar” para confortar Elias) e chegamos à sequência maravilhosamente bem dirigida dos agentes da Cruz Vermelha na casa. Os diretores aí colocam os agentes sentados lado a lado e Elias está com eles, na ponta da mesa — a posição é de dominação, apesar da idade — enquanto Lukas é visto na profundidade de campo, com olhar impassível e mais uma vez vestido igual ao irmão, um ótimo trabalho da figurinista Tanja Hausner que se espalha pelo filme inteiro, com poucas e bem pensadas exceções na diferença de roupa entre eles. Ainda na esfera das pistas, a gruta com ossos e crânios, o gato doente, o aquário de insetos, a pequena balestra e o próprio espaço em torno da casa formam um arcabouço de referências simbólicas que ora nos fazem acreditar em algo e logo adiante mudar de pensamento e questionar o que de fato está acontecendo ou quem de fato tem razão.

O desenho de produção limpo, o adequado ritmo da montagem e no roteiro, os jogos de tortura física e psicológica da mãe vão crescendo a ponto de impressionar e marcar o espectador. A reta final do filme nos coloca em um polo oposto ao que estávamos no início, e isso diz muito, inclusive, sobre a nossa visão de abuso, violência, culpa, acusação, julgamento e vingança, mesmo que em uma escala doméstica e feita sob uma perspectiva indiretamente sociológica, marcada pelo conflito entre pais e filhos, pelo poder de uns sobre os outros e pela troca dos papeis de quem manda e quem obedece, aqui, mais intricada pelo fato de haver uma linha “sobrenatural” em pauta.

Cruel e um prato cheio de referências psicológicas e psicanalíticas para o espectador, Boa Noite, Mamãe é um terror que vai crescendo aos poucos até se tornar um grande e enigmático monstro, contando com uma pontual e bem utilizada trilha sonora, interpretações do trio protagonista de tirar o fôlego e um final que, ainda bem, nos deixa pensando sobre tudo o que vimos. Afinal, porque a Mãe sai andando da casa no penúltimo take (agora com uma roupa diferente da que foi torturada, a mesma que apareceria na cena final) quando os carros de bombeiro estão trabalhando? E o que significa a a última cena, com todos reunidos? Elias e a Mãe morreram no incêndio ou aquilo era parte de uma outra alucinação garoto? As perguntas são essenciais para o modelo narrativo escolhido e executado pelos diretores e nos dá a oportunidade de especular considerando as pistas. Nada como mexer com percepções e perturbações mentais e comportamentais e saber como colocá-las na tela.

Boa Noite, Mamãe (Ich seh ich seh) — Áustria, 2014
Direção: Severin Fiala, Veronika Franz
Roteiro: Severin Fiala, Veronika Franz
Elenco: Lukas Schwarz, Elias Schwarz, Susanne Wuest, Hans Escher, Elfriede Schatz, Karl Purker, Georg Deliovsky, Christian Steindl
Duração: 99 min.

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