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Crítica | Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças

por Marcelo Sobrinho
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Falar criticamente sobre Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças é sempre desafiador, pois a quantidade de fãs de um dos filmes mais queridos do século é enorme e a obra realmente consegue capturar muito fácil públicos muito variados, afinal, relacionamentos fracassados que desejaríamos apagar da memória pertencem à biografia de qualquer pessoa. Dirigido por Michel Gondry e roteirizado por Charlie Kaufman, o longa-metragem é um dos mais inventivos e habilidosos na manipulação que faz dos elementos dos cenários, dos simbolismos oriundos das condições climáticas das cenas, das características físicas dos personagens e das cores, das luzes e das dinâmicas (o que inclui até fast motions), que tanto ajudam ora na comicidade, ora na tensão, ora na afetividade que se alternam na tela. As rupturas e as fusões de tempo e de espaço de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças funcionam bem. Confesso que nunca havia visto uma equipe trabalhando de forma tão coesa, desde o roteirista e o diretor até os montadores.

As atuações de Kate Winslet (Clementine) e, principalmente, de Jim Carrey (Joel) estão certamente entre as melhores de suas carreiras. Esse é um trabalho de Carrey que certamente ombreia com sua atuação dramática em O Show de Truman e talvez até a supere, pois dessa vez se exigiu do ator canadense uma tessitura interpretativa bem maior, indo de cenas mais lúdicas e cômicas (como aquela em que ele volta a ser uma criança de quatro anos) àquelas de franco desespero, abandono, solidão e depressão (isso o filme deixa muito mais implícito, tanto por suas roupas sempre escuras como por sua postura sempre acanhada e macambúzia). A trilha sonora de Beck funciona nos raros e pontuais momentos em que se faz presente. Dialoga com a própria temática de Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças os versos “everybody’s gotta learn sometimes”. Igualmente me agrada o fato de o filme eliminar qualquer possibilidade de se tornar uma genérica aventura de ficção científica, em que os protagonistas lutam para se ver livres da dominação de uma máquina qualquer. Há algo muito mais humano no filme de Gondry e que está efetivamente no centro dessa boa e envolvente história de amor.

E o que há de mais humano em Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças é justamente a compreensão de algo que escapa completamente a qualquer cientificismo perverso ou insensível, como o que vemos na tela quando Clementine e Joel tentam apagar todas as memórias, indistintamente, de seu relacionamento acabado. Agrada-me de saída a forma como a ciência é apresentada no filme. O longa-metragem recusa peremptoriamente o engodo de apresentar uma face hipertecnológica da ciência, capaz de gerar até deslumbre e admiração por suas conquistas futurísticas. Ao contrário, a equipe de cientistas da clínica que promove o “tratamento” não é apresentada com nenhuma pompa ou sisudez. O próprio apetrecho colocado na cabeça dos pacientes parece mal ajambrado e algo tolo, pertencente a qualquer história sci-fi infanto-juvenil desinteressante e pouco verossimilhante. Em suma, a ciência em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças é esteticamente tão infantil quanto a sua própria tentativa de tornar seres humanos máquinas que registram a própria vida como um computador registra suas memórias em um disco rígido.

E eis aqui a principal e mais acertada crítica do filme de Michel Gondry, com forte sabor distópico, à ideia de uma ciência sem limites. O que mais essencialmente escapa aos cientistas do filme é a compreensão de que somos feitos, acima de qualquer coisa, de afetos. É essa afetividade, indelével, que Joel descobrirá durante o processo pseudo-terapêutico ao exclamar: “Não, essa lembrança não! Deixe-me ficar pelo menos com essa.”. Fica o necessário questionamento: que ciência desejamos para o futuro? Aquela que nos conduz ao progresso da técnica sem nos despir de nossa humanidade mais basilar ou aquela que apaga nossas memórias e, assim, apaga a nós mesmos enquanto seres com história? Aquela que nos anestesia e nos infantiliza ou aquela que nos permite sentir o mundo e assim humanizá-lo? É esse nó górdio que o filme aperta. E partindo do que o filme nos entrega, através de uma história de amor tão amada por tantas pessoas, podemos ir além. Não são os afetos, bons ou ruins, que nos ensinam individualmente e, ao mesmo tempo, permitem que a própria humanidade se aprimore coletivamente, mesmo que com enormes dificuldades e reveses?

Talvez o filme merecesse um desfecho um pouco mais aprofundado, que de algum modo tocasse mais nessas questões sucedâneas que ele mesmo, implicitamente, suscita. No lugar disso, a cena final mostra a reconciliação dos protagonistas com um diálogo bastante clichê. Mas a conclusão um pouco decepcionante não é capaz de mudar um fato – a inventividade do roteiro, a direção ágil e vibrante de Gondry e o desempenho excelente dos atores principais tornam Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças um filme original, bem conduzido e capaz de fazer pensar em diversas camadas. Talvez as pitadas de apelo fácil aqui e acolá até contribuam para convidar o espectador mais casual à reflexão proposta. O certo é que nunca vi o cinema abordar com tamanha contundência questões com as quais teremos que nos haver num futuro cada vez mais próximo. Poderão, em um curto prazo, a memória e a biografia se tornar apenas dados manipuláveis e medidos em bytes dentro de um programa de computador ou de um app de smartphone?

Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind) – EUA, 2004
Direção:
 Michel Gondry
Roteiro: Charlie Kaufman
Elenco: Jim Carrey, Kate Winslet, Tom Wilkinson, Elijah Wood, Thomas Jay Ryan, Mark Ruffalo, Jane Adams, David Cross, Kirsten Dunst, Tom Wilkinson
Duração: 108 min.

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