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Crítica | Cartel Land

por Luiz Santiago
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estrelas 4

O que você faria se a violência o afetasse (e à sua família) íntima e diretamente e não houvesse polícia ou Estado que se manifestasse para defendê-los? *

Esta é a pedra angular de  Cartel Land (2015), documentário de Matthew Heineman que aborda a complexa situação dos cartéis do narcotráfico no México e de sua passagem — ou a passagem de seus produtos — pela fronteira dos Estados Unidos. O filme elenca diversos caminhos críticos para o público trilhar, fornecendo material necessário para que a situação seja vista sob sua tênue linha entre os “bons” e os “maus” da história, que com o passar o tempo, se confundem, se misturam e se transformam.

Dois cenários são expostos. O primeiro, no Arizona, onde um grupo de americanos fazem patrulha de uma pequena área da fronteira, impedindo que traficantes (de pessoas e drogas) passem por aquela região. Fica claro para o espectador que este grupo parece um conjunto de Quixotes que lutam contra algo quase teórico sob o seu ponto de vista. Claro que existe a ameaça e o medo dessa passagem do narcotráfico e dos cartéis mexicanos para o Arizona e restante dos Estados Unios. Mas se olharmos para a questão na prática, isso já acontece — e não é de hoje –; não da forma maligna e dominadora-massacrante que o exagero tende a pintar, mas sim, já acontece; e não é um pequeno grupo de vigilantes de fronteira que está em menor número, com menos armas e equipamentos do que seus inimigos que irá deter o narcotráfico mexicano ou impedir que a [enorme] fronteira entre Estados Unidos e México continue sendo o ponto de passagem, como vem sendo nas últimas décadas, de uma boa parte das drogas que circulam no país.

Por uma parte, esse bloco americano é curioso pelo contraste que cria em relação ao bloco mexicano. No entanto, sua real importância para a narrativa e o peso que ele tem na construção de Cartel Land é mínimo e muitas vezes, incômodo ou mal conduzido, o que jamais acontece do outro lado.

O que faz com que o documentário tenha algum problema é esse jogo entre as duas realidades, seja porque uma delas recebe maior importância, seja porque uma delas tem apenas a função de expor uma mescla de paranoia ou exagero de uma realidade misturada com xenofobia e pequenas doses de fascismo. Mas a questão não é tão simples. Julgá-la apenas por uma lógica sociopolítica simplista de nada ajudará o seu entendimento, poque faltam aí considerações econômicas, culturais, estatais e ideológicas.

O diretor Matthew Heineman afirmou em entrevista a uma das produtoras do filme, Kathryn Bigelow, que a ideia original da obra era mostrar apenas o lado dos vigilantes americanos. Mas ele leu um artigo sobre José Manuel ‘El Doctor’ Mireles, líder que fazia exatamente a mesma coisa no México, e então viajou para o país vizinho a fim de conhecer a ação do grupo das Autodefesas contra o cartel dos Cavaleiros Templários. E é aí que Catel Land começa a ficar interessante. Enquanto o lado americano é marcado por uma ação menor, algo como um “muito barulho por [quase] nada”, a coisa no México se desenvolve como uma verdadeira guerra civil, a ponto de o Estado de Michoacán ter pelo menos metade de seus 113 municípios marcados por esta guerra.

Neste ponto, a discussão de legitimidade da “justiça com as próprias mãos“, a ameaça que bate à porta, a verdadeira luta entre mocinhos e bandidos ganham o seu ponto máximo e mostram que Matthew Heineman é um cineasta muito corajoso. Suas missões in loco são visivelmente perigosas e muito bem filmadas, mesmo em momentos de grande movimentação, como tiroteios e perseguição. A montagem final acabou deixando passar algumas sequências dispensáveis e momentos não filmados, apenas com as vozes dos vigilantes, que poderiam ser melhor trabalhados em termos de ilustração, mas nenhum desses elementos impedem que esta seja a melhor e mais bem trabalhada parte da fita.

É difícil apontar com certeza quem são as boas e as más pessoas em jogo. Esqueçam o insosso lado americano do filme. Foquem no lado mexicano. Percebam que a mudança de ideais, liderança e caminhos a serem seguidos pelo grupo das Autodefesas, por exemplo, é um indicador de que o ciclo podre da política também existe aqui e é perpetuado pela enorme clientela americana — e de outros lugares da América — para as drogas ali fabricadas, situação que alimenta todo o crime organizado que ela gera, desde grupos que dominam vilas e municípios inteiros a ponto de cobrar “impostos” dos cidadãos, até a luta armada contra organizações que surgem com o propósito de defender as comunidades, mas depois, se desvirtuam.

Cartel Land é, sem querer, um exemplo claro de como manifestações ideológicas e grupos organizados tendem à corrupção em algum momento. E a discussão para esse tema não acaba nas milícias, cartéis, torturas, metanfetaminas e discursos de segurança pública e política anti-drogas. A discussão aí avança para o próprio ser humano, como exposto na reflexão final que o americano faz (enfim, algo útil!) no desfecho da fita.

Metaforizando o exemplo familiar dado por ele, temos um início histórico para todas essas questões e é evidente que o ciclo aí exposto pode ser quebrado. A História não é imutável, muito pelo contrário. O que nos enraivece é a constatação de que aqueles que poderiam lutar por essa mudança ou pela quebra do ciclo, na verdade, lucram e apoiam direta ou indiretamente a permanência de todo este estado das coisas.

É por isso que Cartel Land é um filme altamente recomendado. Afinal, quem merece apoio nesse jogo todo? Essa pergunta fica no ar como uma adaga pronta para nos atacar. E vejam que uma ideia fixa, fácil e reducionista como resposta só pode piorar ou manter as coisas como estão. No final das contas, tudo se resume ao questionamento mais desalentador de todos: “o que fazer?“.
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* É importante deixar claro que essa mesma pergunta pode ser aplicada ao Brasil ou a qualquer outro lugar do mundo onde o Estado e suas forças protetoras/de repressão deveriam defender TODOS os cidadãos. Todavia, o documentário não fala do Brasil ou de outros lugares do mundo, portanto, a pergunta e o desenvolvimento do texto será unicamente para os dados do documentário.

Cartel Land (México, EUA, 2015)
Direção: Matthew Heineman
Roteiro: Matthew Heineman
Duração: 100 min.

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