Home FilmesCríticasCatálogos Crítica | Chove Sobre Nosso Amor

Crítica | Chove Sobre Nosso Amor

por Luiz Santiago
764 views

Em uma noite chuvosa, a jovem Maggi conhece o ex-presidiário David. Maggi foge de seus demônios pessoais e de uma vida de dificuldades, grávida de um bebê que ela não sabe quem é o pai. David tenta começar uma nova vida depois de ter sido preso diversas vezes. Ambos viverão uma história de amor neste segundo filme de Ingmar Bergman, adaptação da peça teatral Brava Gente, de Oskar Braathen. Diferente de Crise (também baseado em uma peça de teatro), o roteiro de Chove Sobre Nosso Amor foi escrito por Herbert Grevenius, tendo uma única sequência escrita por Bergman, a do julgamento, no final do filme.

O longa reflete elementos da sociedade sueca do pós-guerra, que vão desde o campo econômico ao ideológico. Uma forte presença noir (e um estilo narrativo – mas não formal – muito próximo ao de Michael Curtiz) permeia o filme. Além disso, é visível a busca de Bergman para encontrar um estilo pessoal. Nessa primeira fase de sua carreira, assimilar e “reinventar” suas influências seria uma espécie de meta muda, cujo ápice, talvez, seja Porto (1948), obra de fortíssimo caráter rosselliniano. Assim como em CriseChove Sobre Nosso Amor tem um narrador, mas aqui ele aparece e fala com o espectador, quebrando a diegese fílmica. Para complementar, há alguns intertítulos que servem como “atos” ou “capítulos” para o filme.

Além da influência noir, é impossível não vermos elementos neorrealistas em Chove Sobre Nosso Amor, a começar pela classe e condição social dos protagonistas e da maioria das pessoas que os rodeiam. A luta de interesses se dará em diversos momentos do filme, especialmente entre os que possuem coisas (o lote de terra, o emprego) e os que dependem delas. As personagens passam por humilhações morais motivadas por sua condição social e com base em sua vida pregressa ou nas atitudes “ilegais” cometidas no momento corrente da película.

O discurso afetadamente moral, a burocracia e hipocrisia são vistos a partir da chegada do funcionário público (interpretado pelo excelente Gunnar Björnstrand, em sua primeira parceria com Bergman), que tem a ordem de despejo para o casal Maggi e David. O que será revelado posteriormente é que a casa em que mora o casal, alugada de um fazendeiro da região, é uma casa pré-fabricada que o tal fazendeiro carrega para diferentes lugares, aplicando golpes de falso aluguel, cobrando taxas e até incriminando os moradores. A grande ironia é que os indiciados pelos crimes serão David e Maggi. Na sequência do tribunal, Bergman preencheu de moral para depois ridicularizar o discurso do promotor contra o casal protagonista, que começa assim:

_ Temos diante de nós dois jovens que tiveram oportunidades de buscar um meio de vida de certo modo miserável, mas respeitável. Uma posição simples, mas honesta, em nossa sociedade sueca. Mas eles não quiseram isso! Com aguda carência de ideais, insensibilidade e indiferença às leis mais básicas da vida e da sociedade eles tem nadado com a corrente, como criaturas marinhas guiadas por seus extintos mais vis, suas necessidades mais primitivas, sem pensar em construir uma vida para si próprios.

Segue-se então um inflamado discurso pedindo ao júri que “salve a sociedade deles e salve eles deles mesmos”. Quando o advogado de defesa substituto (o narrador onipresente) começa sua defesa, tudo o que o promotor e as testemunhas de acusação afirmaram passa a ser visto através do seu viés dialético. Nada é negado, mas o júri é convidado a olhar para si mesmo naquelas mesmas condições. Assim como Hannah Arendt, Bergman coloca em xeque o poder de quem julga e a responsabilidade e validade do julgamento.

O amor entre os dois jovens não é menos complicado que sua relação social. A adaptação de ambos a hábitos “de uma nova vida” é dolorosa e causa algumas feridas durante o processo. Maggi e David são almas massacradas pela penúria, mas que encontram no amor a força para empreenderem uma luta e buscarem uma realidade diferente. A chuva e um cão acompanham o casal durante todo o filme. A fecundidade trazida pela chuva (que faz “nascer” o casal) é acompanhada pelo guia nefasto, um poodle preto que é adotado por eles. A figura familiar ou vigilante do cão integra-se à sua função mítica, a de psicopompo, “guiando o homem na noite da morte após ter sido seu companheiro no dia da vida“.

A cena final da obra é pitoresca: embora juntos e felizes, o casal não tem dinheiro, nem casa, nem para onde ir. Estão parados em uma encruzilhada onde ganham um guarda-chuva de um homem que passa numa bicicleta (o narrador onipresente). De braços dados sobre a chuva, Maggi e David seguem caminho em busca de uma oportunidade, esperançosos do sucesso de uma nova tentativa. Nada mudou desde a primeira cena, a não ser o fato de estarem juntos. Aos olhos da igreja, estão em pecado, por não serem casados. Aos olhos da sociedade, são marginais, vagabundos. Apenas a fecunda chuva que cai sobre o par promete alguma prosperidade e esperança. Algum consolo necessário a esse amor à margem.

Chove Sobre Nosso Amor (Det regnar på vår kärlek) – Suécia, 1946
Direção: Ingmar Bergman
Roteiro: Herbert Grevenius, Ingmar Bergman (baseado na peça de Oskar Braaten)
Elenco: Barbro Kollberg, Birger Malmsten, Gösta Cederlund, Ludde Gentzel, Douglas Håge, Benkt-Åke Benktsson, Sture Ericson, Ulf Johansson, Julia Cæsar, Gunnar Björnstrand, Erik Rosén, Magnus Kesster, Åke Fridell
Duração: 95 min.

Você Também pode curtir

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Presumimos que esteja de acordo com a prática, mas você poderá eleger não permitir esse uso. Aceito Leia Mais