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Crítica | Cidade das Mulheres

por Luiz Santiago
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Cidade das Mulheres (1980) é, curiosamente, uma viagem de Fellini ao universo machista, tomando como ponto de partida a visão feminina. Depois de exaltar e humilhar a feminilidade em seus filmes, o diretor se dispôs a confrontar a própria visão que tinha das matronas e modelos, das mammas e nonnas que filmou no decorrer dos anos, não perdendo também a oportunidade de criticar e expor os anseios, medos, fetiches e padrões sociais destinados às mulheres (algo nas entrelinhas de As Tentações do Dr. Antônio). Até o mito da mulher ideal é trabalhado pelo diretor aqui, culminando com o desencanto típico de tudo o que é imaginado: a realidade se apresenta mais trágica e menos acolhedora que o objeto idealizado, cabendo ao protagonista um único caminho: a fuga.

Marcello Mastroianni, cuja última parceria com Fellini fora em 1969, em Anotações de um Diretor, assume mais uma vez o papel de alter-ego do cineasta, carregando também o bônus da invenção de Fellini, que colocou no personagem não apenas parte de suas experiências com mulheres, mas também inventou situações e adicionou características da ideologia machista que ele próprio não compartilhava. Sendo assim, Cidade das Mulheres é um tour por tudo o que Fellini era e não era; uma mostra das várias facetas masculinas.

O início do filme já traz uma simbólica alusão sexual (o trem entrando no túnel) e curiosamente também nos apresenta o início da viagem onírica, desvendada apenas no desfecho da obra. Mastroianni esbanja simpatia e atua com uma espantosa naturalidade considerando o tipo de texto que tinha em mãos. Seu personagem segue a libidinosa mulher que o atrai no trem e chega à Cidade das Mulheres, uma espécie de recanto onde o domínio masculino não existe e a feminilidade é exercida em diversos níveis: libertários ou socialmente padronizados. Por isso é que encontramos mulheres representadas como donas de casa (também satirizadas em um pequeno esquete), feministas, lésbicas, artistas, ninfomaníacas, etc. O desfile dos clichês é imenso e vai tornando a sessão bastante curiosa e divertida.

Fellini disse que seria mais interessante se o público não tentasse analisar a obra, mas a visse apenas por seu caráter onírico e psicológico. Tentaremos não dissecar cada elemento do filme, mas há sequências que precisam ser comentadas e trazidas à razão (quem resiste a isso?), dada a força da mensagem que apresentam e a essência que trazem para o filme. Como exemplos, cito a luta pela mulher ideal e o escorregador da memória, talvez as mais icônicas sequências do filme no sentido de identidade.

O Snàporaz de Mastroianni se vê em um lugar que, em tese, sempre quis estar, mas ao mesmo tempo é amedrontado pela força e pela “nova constituição” das mulheres. Ele então quer fugir delas. A música de Luis Bacalov tem um papel muito importante nesse processo e reitera aquilo que comentamos no texto de Casanova: apresenta um novo momento musical do diretor, com destaque para elementos distintos na trilha com pop e ópera, além da música incidental. O filme ainda traz uma espécie de antecipação de Ginger e Fred (1986), com Mastroianni dançando para um grupo de mulheres, imitando Fred Astaire.

O cenário mais imaginativo do filme é também aquele que lhe traz a cena mais bela: o escorregador da memória. Snàporaz desce por ele e visualiza momentos de seu passado marcado por mulheres, quase um retorno ou um outro ângulo da descoberta sexual mostrada em Oito e Meio, Roma e Amarcord. Dentre essas cenas, temos uma em que o pequeno Snàporaz e seus amigos espiam uma mulher colocar sua roupa de banho antes de entrar no mar. Tudo nessa cena é belo: a estupefação dos meninos (embora estejam de costas), a impressionante fotografia e o próprio significado e contraste de algo tão terno para a “violência” das relações homem-e-mulher da vida adulta do protagonista.

Penso que o filme deveria ter terminado justamente no momento em que Snàporaz chega ao chão, após descer do escorregador, sendo então capturado. Embora eu veja algo muito positivo no significado da sequência da mulher ideal, que vem justamente depois disso, poderia muito bem viver sem ela a ter uma sucessão arrastada de eventos e uma entrega bastante mastigada no final, com o protagonista acordando e revelando que tudo aquilo fora apenas um sonho. Parte do que Fellini construíra até o momento final do escorregador é destruído pelo que vem depois, seja pelo ritmo desnecessariamente arrastado, seja para um deslocamento anticlimático que essas cenas nos levam, o que é uma pena, já que todo o restante é uma verdadeira crítica e divertida viagem pelo misterioso mundo feminino, uma aventura digna de um grande espetáculo.

  • Crítica originalmente publicada em 4 de fevereiro de 2014. Revisada para republicação em 01/06/2020, como parte da versão definitiva do Especial Federico Fellini aqui no Plano Crítico.

Cidade das Mulheres (La città delle donne) – Itália / França, 1980
Direção: Federico Fellini
Roteiro: Federico Fellini, Bernardino Zapponi, Brunello Rondi
Elenco: Marcello Mastroianni, Anna Prucnal, Bernice Stegers, Jole Silvani, Donatella Damiani, Ettore Manni, Fiammetta Baralla, Hélène Calzarelli, Catherine Carrel, Marcello Di Falco, Silvana Fusacchia.
Duração: 139 min.

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