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Crítica | Cisne Negro

por Rafael W. Oliveira
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Em algum momento, todo e qualquer cineasta traz para o público aquela obra que irá sintetizar, de alguma forma, todo o conjunto da obra daquele realizador, quase que uma amostra explicita sobre no quê se apoia seu estilo de filmar, de narrar uma história, ou sobre como tratar seus personagens. No caso de Darren Aronofsky, Cisne Negro é o filme que representa o que é o cinema deste diretor. Na dolorida e tocante jornada da bailarina Nina, temos muito do delírio psicológico de Réquiem para um Sonho, um pouco do delírio visual de Fonte da Vida e um grande apego ao protagonista e sua complexidade, tal qual foi visto em O Lutador.

Cisne Negro também é, além de tudo isto, uma ode à arte e a paixão do artista ao conceber, viver e respirar esta arte. Tal qual foi a própria produção (que teve um orçamento apertadíssimo), o filme é um estudo obsessivo sobre a busca por um perfeccionismo que pode ser destrutivo, sobre o artista que enxerga a si próprio naquela arte exercida, e que acaba se tornando o próprio significado daquela arte. Em linhas resumidas, Cisne Negro é uma das experiências sensoriais mais poderosas dos últimos anos, o que não é pouco.

No filme, conhecemos Nina (Natalie Portman, vencedora do Oscar por este filme), uma bailarina extremamente rigorosa consigo mesma, especialmente devido a convivência com sua controladora mãe (Barbara Hershey), uma ex-bailarina frustrada que enxerga em Nina as possibilidades de materializar e realizar seus próprios sonhos. Quando uma nova adaptação mais ousada e visceral do musical O Lago dos Cisnes começa a ser planejada pelo ambicioso Thomas Leroy (Vincent Cassell), que numa ideia inovadora, deseja escalar a mesma atriz para interpretar os dois papéis fundamentais do musical: o Cisne Branco e sua irmã maligna, o Cisne Negro do título. Nina se mostra uma candidata forte para o papel, mas enfrenta sérias dificuldades em incorporar a irmã malvada devido a sua personalidade ingênua e frágil. Apesar de tudo, Nina consegue o papel, mas aos poucos começa a mergulhar numa espiral de loucura devido a pressão exercida pelo papel e por sua rival Lily (Mila Kunis), que parece querer, a todo custo, arrancar o papel de Nina.

Narrado unicamente sob o ponto de vista de Nina, Cisne Negro se adequa a um gênero bastate popularizado na década de 70, especialmente pelo cineasta Roman Polanski: o thriller subjetivo. Talvez daí tenham vindo as inúmeras comparações com algumas obras como Repulsa ao Sexo, O Bebê de Rosemary e O Inquilino, todos grandes estudos de personagens feitos por Polanski que mergulhavam numa narrativa que confundiam o real com o imaginário. Tal qual tais obras citadas, o filme de Aronofsky é um suspense denso, onírico, excepcionalmente bem filmado e que faz uso criativo de seus recursos visuais, que se tornam um complemento mais do que essencial para o diretor desconstruir a trajetória ensandecida de Nina.

Já na sequência abertura, Aronofsky nos dá um exemplo do que será a experiência de assistir Cisne Negro: vemos Nina isolada num cenário escuro, e a câmera, ainda distante, aos poucos se aproxima dos movimentos calibrados e leves da bailarina, e é quase como se a própria câmera estivesse dançando junto com Nina. A sequência, curta, porém extremamente apaixonada, é essencial para compreendermos o grande desejo de Nina em conseguir o papel dos dois cisnes, já que esta seria a oportunidade perfeita para a jovem bailarina exercer sua busca pela perfeição nos palcos.

Enquanto Nina vai mergulhando cada vez mais em sua própria paranoia, chega um momento em que o próprio espetador começa a se indagar sobre a veracidade das imagens na tela. Cenas de automutilação, aparições repentinas, desejos sexuais vindo à tona… Aronofsky nos joga em meio a um balé de emoções e sensações, permeando o filme de um clima intrigante e hipnótico, o qual é impossível passar incólume.

Como um cineasta apaixonado pelo significado das imagens e do som, Aronofsky concebe um trabalho sonoro que valoriza mesmo os pequenos detalhes, que aparentemente fúteis, se tornam elementos indispensáveis para mergulhar o espectador cada vez mais em sua narrativa de pesadelo. Repare como o diretor demonstra certa obsessão em denotar alguns sons e ruídos que retratam a dificuldade de um bailarino(a), como quando Nina estala os pés ao acordar, ou como quando ela arranha as solas das sapatilhas para melhorar sua performance. Indo mais longe, Aronofsky insere, em pequenos e sutis momentos, sons de asas batendo, o que representa à entrega de Nina ao seu momento de extrema fragilidade. Repare também em como a câmera do diretor sempre acompanha o andar de Nina pelas costas, transformando o espectador numa espécie de vouyer da jornada dolorosa de Nina, ou mesmo quando, em momentos-chave, o diretor faz uso do reflexo de espelhos (veja bem a cena em que Nina leva Lily para seu apartamento), numa representação da confusa dualidade em que se encontra a realidade de Nina.

E é realmente impressionante o quanto o trabalho técnico de Aronofsky alcança um estado de perfeição quase tão obsessivo quanto o desejo de Nina em alcançar sua própria impecabilidade. Além das belíssimas jogadas visuais, o diretor trabalha em cima de cenários amplos e espaçosos, mas que se tornam pequenos e claustrofóbicos diante da opção de Aronofsky em muitas vezes, aproximar sua câmera do rosto dos personagens, uma solução visual que funciona maravilhosamente bem. A fotografia de Matthew Libatique oscila com perfeição entre tons soturnos que variam entre o preto e o branco (uma clara referência aos próprios cisnes), e a trilha sonora de Clint Mansell, que trabalha com variações dissonantes do tema de O Lago dos Cisnes, de Tchaikoviski, é extremamente funcional ao manter o clima onírico de diversas cenas.

Natalie Portman, numa entrega impressionante e dedicada ao papel (a atriz chegou a fraturar as costelas durante as filmagens) convence muito bem como a delicada e insegura Nina, e surpreende muito bem no terceiro ato ao interpretar o Cisne Negro, numa sequência de tirar completamente o fôlego. Vincent Cassel está adequado como Thomas Leroy, inclusive protagonizando uma sequência de sedução com caráter bastante singular. Mila Kunis esbanja sensualidade e mistério como Lily, aparente rival de Nina, e Barbara Hershey completa o time das boas atuações como a controladora mãe de Nina.

Embora Aronofsky escorregue lá pelas tantas em seu próprio ego (“Foi perfeito”), algo mais do que desnecessário para um cineasta que já havia comprovado diversas vezes seu talento atrás das câmeras, Cisne Negro permanece na mente por um bom tempo após seu desfecho épico e inacreditavelmente enérgico. Gostando ou não do cinema de Darren Aronofsky, esta é uma viagem psicológica e sensorial como há muito não se via no Cinema, e os principais méritos deste feito devem ir para o talento singular de Darren Aronofsky.

Cisne Negro (Black Swan) — EUA, 2010
Direção:
Darren Aronofsky
Roteiro: Mark Heyman, Andres Heinz e John J. McLaughin
Elenco: Natalie Portman, Vincent Cassel, Barbara Hershey, Mila Kunis, Winona Ryder, Benjamin Millepied, Ksenia Solo, Kristina Anapau
Duração: 108 min.

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