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Crítica | Como Nossos Pais

por Rafael W. Oliveira
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Em um dos vários momentos de ebulição em meio ao estado cambaleante de seu casamento, Dado (Paulo Vilhena, de Chega de Saudade) diz à esposa e nossa protagonista Rosa (Maria Ribeiro, de Entre Nós), tentando justificar suas constantes viagens e seu apego aos projetos ambientais, que teve de abandonar até mesmo as “peladas” com seus amigos para se dedicar à família e ao seu trabalho. Em retruco, Rosa diz que teve que abandonar seu sonho de ser dramaturga e se manter num trabalho que não gosta para sustentar a família e se dedicar a cuidar das duas filhas e do marido. E antes deste momento de “pesos e medidas”, Rosa já visto seu mundo desmoronar na abertura do almoço em família, onde sua mãe, Clarice (Clarisse Abujamra, de Bruna Surfistinha) lhe revela um segredo existente há 38 anos que lhe faz repensar toda sua trajetória de vida até então.

É perfeitamente claro o quanto Como Nossos Pais é um filme sobre papéis. Papéis estes que, diante da perspectiva feminina de Rosa, analisam, discutem, exploram e debatem o sistema patriarcal que persiste no dia-a-dia do cuidado com a família. Rosa, desde o início, é uma personagem que sofre com exigências: exigências em entender as atitudes inicialmente incompreensíveis e repulsivas de sua mãe, exigências em lidar com um marido que pouco contribui financeiramente com o orçamento familiar e se limita a brincar com as filhas quando chega de suas longas viagens, exigências em lidar com um pai (Jorge Mautner, de Casa de Areia) fracassado em sua vida artística e que parece constantemente estar á procura de uma mulher que o sustente. O longa não é apenas sobre Rosa, mas é a partir dela e de seu repensar sobre desejos, deveres e o desespero de burlar seu cotidiano sufocante que todos os demais personagens também são moldados e desnudados pelo roteiro da diretora Laís Bodanzky (de Bicho de Sete Cabeças e As Melhores Coisas do Mundo) escrito em parceria com o marido Luiz Bolognesi (da singular animação Uma História de Amor e Fúria).

E a música de Belchior, que dá título ao filme, surge de forma contundente como uma representação do jogo de espelhos que cercam os personagens da narrativa, em especial a própria Rosa, que numa leitura imediata, se revela uma versão internalizada de sua mãe, que ao afirmar o quanto “viveu a vida muito bem”, denota os anseios mais profundos de Rosa como mulher em abandonar as imposições de mãe e esposa que lhe são conferidas para viver sua vida de acordo com as próprias rédeas. Rosa quer ser sua mãe, quer aceitar tão alegremente o que a vida lhe põe no caminho como sua genitora fez no passado, mas se sente presa sobre o que construiu ao longo de seu casamento. Rosa sugere para sua mãe um sapato marrom, sutil, mas Clarice decide pelo vermelho, chamativo. No segundo seguinte, Rosa aparece observando sua mãe com um sorriso no rosto, admirada por seu bem-estar mesmo diante de uma tragédia iminente anunciada por ela. Da mesma forma, num momento onde toma café com seu pai um tanto excêntrico e desvairado, Rosa se pega sorrindo com o homem que lhe criou extraindo alegria e poesia mesmo diante de sua situação financeira nada favorável.

E assim, Como Nossos Pais vai seguindo com todos estes questionamentos sobre os valores familiares, sobre as cercas patriarcais, as imposições e frustrações matrimoniais, o valor da genealogia. Bodanzky e Bolognesi inundam seu script com um número impressionante de camadas, leituras, percepções, por mais que suas representações visuais (o leite transbordando) ou alguns diálogos desnecessariamente explícitos (o desabafo da meia-irmã ao ser pega beijando outra garota no sofá da sala de Rosa) derrubem a sutileza com que a diretora e seu elenco, na maior parte do tempo, apoiam o filme. Da mesma forma, os roteiristas se excedem com o indiferente pano de fundo político representado pela figura do chefe da casa civil, Roberto Natham (Herson Capri, de Heleno), que num acelerado, mas perceptível trecho, nos permite notar que faz parte da administração de Dilma Rousseff. O breve momento soa deslocado e rapidamente a figura do personagem, que em outro desenvolvimento teria sido mais importante para Rosa, rapidamente é descartada.

Mas há ambiguidade e sutileza de sobra no longa de Bodanzky, que sem qualquer pressa no desenvolvimento de seus conflitos, se deixa inundar por uma força imersiva que permite facilmente que o público, homens e mulheres, se identifiquem com todas as angústias e pouco questionem as atitudes daqueles rostos, mas apenas os compreendam. O filme é belissimamente pontual nas situações-limite que vai construindo gradativamente, nas camadas que vai elaborando e transformando aquelas personalidades em seres palpáveis, com os quais compartilhamos nossa empatia pela tentativa de fuga do cotidiano e a busca pela felicidade mesmo no que há de mais banal e discutível.

E é por demais prazeroso acompanhar tantas figuras defendidas com garra por um elenco notavelmente preparado para os desafios de cada papel. Maria Ribeiro vai do céu ao inferno como Rosa exemplificando com eficácia todos os momentos de força e vulnerabilidade da protagonista, uma mulher que representa o ontem, o hoje e o amanhã. Paulo Vilhena realmente surpreende ao encarnar o marido despreocupado com o estado de sua relação familiar, mas que jamais é apresentado como uma espécie de vilão definitivo na vida de Rosa, um papel mais complexo do que é aparente, e que Vilhena carrega com naturalidade. Jorge Mautner se firma de forma singular como o pai de Rosa, que vai do estranhamento inicial ao poder cativante pela maneira como encara a vida artística e o quanto se anima com ela. Mas é Clarisse Abujamra que rouba a cena, num papel onde a atriz equilibra com precisão os sentimentos de hostilidade e amor pela filha, e é dela o momento mais tocante da projeção, prova da força representativa de sua figura na obra.

Tecnicamente irrepreensível em seus enquadramentos econômicos (notem como Bodanzky captura o quarto das filhas e do casal em um mesmo plano) e fotografado com uma luminosidade estonteante por Fabrício Tadeu, Como Nossos Pais é um retrato fidelíssimo, atual e intenso sobre família, feminilidade, escolhas, anseios e a procura pela felicidade em sua plenitude, independente de onde ela venha. O roteiro se perde, entre umas e outras, em meio a caricaturas que pouco condizem com a sutileza da proposta (a meia-irmã questionando uma história da Bíblia), mas há sensibilidade de sobra e uma compreensão louvável sobre os personagens que desenha ao longo de sua metragem. Belíssimo filme.

Como Nossos Pais — Brasil, 2017
Direção:
Laís Bodanzky
Roteiro: Laís Bodanzky, Luiz Bolognesi
Elenco: Maria Ribeiro, Clarisse Abujamra, Jorge Mautner, Annalara Prates, Felipe Rocha, Sophia Valverde, Paulo Vilhena
Duração: 102 min.

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