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Crítica | Crepúsculo dos Deuses

por Roberto Honorato
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Continua maravilhoso, não é mesmo?
E sem diálogos. Não precisávamos de diálogo, tínhamos rostos!

O pobre coitado sempre quis ter um piscina. Bem, no fim ele conseguiu uma”, narra Joe Gillis (William Holden), mesmo que postumamente, enquanto seu corpo boia e uma aglomeração de fotógrafos e policiais tomam conta da cena do crime. A coragem e a confiança de Billy Wilder em começar um filme desse jeito — e terminar de outro ainda mais surpreendente –, é o porquê de Crepúsculo dos Deuses ser tão memorável. O drama noir de Billy Wilder (diretor e co-roteirista, ao lado de Charles Brackett e D.M. Marshman Jr.) deixa o espectador maravilhado e chocado com o retrato que pinta de uma Hollywood não tão glamurosa quanto se imagina. A história segue Joe Gillis, um roteirista passando por problemas financeiros que se submete a realizar projetos para produtores sob a promessa de um chamariz narrativo para agradar os estúdios. Quando recebe a oportunidade de trabalhar com Norma Desmond (Gloria Swanson), uma das maiores figuras do cinema mudo, para desenvolver um roteiro que pode trazê-la de volta ao estrelato, não faz ideia de que está se envolvendo em uma teia de manipulação e trapaças.

Wilder é um grande roteirista, não considero isso sequer contestável, e sua filmografia é a maior prova. Responsável por obras como Pacto de Sangue e as comédias Se Meu Apartamento Falasse e Quanto Mais Quente Melhor, ele conseguiu cimentar seu nome com uma abordagem única e métodos inteligentes de executar seus projetos, sempre sagaz e, quando pode, com um pouco de cinismo (o que parece funcionar muito bem, obrigado). Wilder também dirigiu os filmes mencionados anteriormente, mas costuma ser reconhecido, na maioria das vezes, pelo tempo que passa na máquina de escrever — o que não desvalida de forma alguma suas habilidades por trás da câmera (contida e objetiva), mas sim mostra o quão perfeccionista e atento aos detalhes ele é com seu texto. Crepúsculo dos Deuses apresenta um estudo de personagem fascinante, com uma estrutura narrativa que quebra várias convenções do gênero. Aqui, a femme fatale é representada por uma estrela decadente que não trabalha desde as películas silenciosas, sem contar que já sabemos o que aconteceu e quem são os responsáveis pelo crime, só precisamos dos motivos e circunstâncias. À vista disso, é visível a sua dedicação em criar uma atmosfera dramática, cheia de rimas visuais que complementam a narrativa sutilmente. Isso pode ser visto quando Norma Desmond exibe, para Joe, seu filme, Minha Rainha, em sua sala. É possível ver como a personagem trouxe componentes de suas películas para a vida real, um exemplo são as velas espalhadas pela mansão, iluminando os cantos vazios e a poeira tomando conta da mobília.

Vale lembrar que este filme dentro do filme é uma produção real, dirigida por Erich Von Stroheim e estrelado por Gloria Swanson. Estes momentos de metalinguagem são recorrentes e servem para evidenciar a crítica de Wilder ao sistema da indústria que negligenciou os talentos que perderam suas carreiras com a chegada do som. Stroheim, um diretor bastante respeitado na era silenciosa, aqui interpreta o fiel mordomo de Norma, e isso não foge muito de uma triste verdade, já que muitos artistas tiveram que seguir em frente e abandonar a cidade dos sonhos por não poderem colaborar ou se adaptar às mudanças. A presença de figuras icônicas como Anna Q. Nilsson, Buster Keaton e H.B. Warner, rostos que tinham o costume de surgir em todas as tela de cinema, traz certo desconforto ao serem representados como “estátuas de cera” através da narração seca e sarcástica de Gillis. Hedda Hopper também tem espaço em poucos momentos, e o icônico diretor Cecil B. DeMille contracena com Gloria em uma das cenas mais realistas e deprimentes que já vi: Norma visita seu antigo estúdio, a Paramount, e tenta conversar com DeMille sobre a possibilidade de um novo projeto. Alienada de tudo e todos graças ao mimo recebido durante a visita, a atriz não aceita ou percebe que está tentando recriar algo que nunca mais poderá ter. Quando Norma diz que “sem mim sequer haveria a Paramount”, fica difícil distinguir ficção de realidade (Swanson realmente colaborou para o sucesso do estúdio com seus filmes no começo da carreira).

Crepúsculo dos Deuses é um olhar crítico no comportamento da indústria cinematográfica, sem medo de apontar dedos ou até mesmo repreender certas convenções. Wilder aproveita o filme para confessar algumas de suas frustrações como roteirista. “Não sabia que as melhores histórias foram feitas de estômago vazio?”, linhas de diálogo como esta mostram sua posição e a forma como o responsável pelo argumento de um filme não tem tanto poder ou sequer chance de participar da parte da indústria que envolve cartas de fã e aclamação pública. Não que esta seja a intenção de um roteirista, mas dá pra compreender a falta de autoestima que muitos da área sentiam (e ainda sentem) por conta da perspectiva daqueles fora do processo criativo. Joe, que nem consegue pagar para manter seu carro, começa a divagar enquanto escreve, “eu sinto que perdi meu toque. Talvez [meus roteiros] não estejam sendo originais o suficiente, talvez estejam sendo originais demais. A única certeza é que eles não vendem”. A demanda por originalidade e ao mesmo tempo por algo de fácil assimilação e reconhecimento do espectador não é de hoje. O longa aproveita para mostrar outros pontos de vista sobre esse debate através da jovem e entusiasmada Betty Schaefer (Nancy Olson), que consegue atender as demandas e não vê problemas em adaptar-se para seguir criando. Se não gostam de seu nariz, ela pode mudar, e se ela não consegue ser atriz, procura a próxima oportunidade. Essa flexibilidade não é encontrada em Norma ou Gillis, ambos orgulhosos demais mesmo sabendo que estão indo contra “a máquina”. Nestas relações o filme constrói o drama principal, nas interações entre Norma, Joe e Betty somos capazes de ver o conflito interno que muitos roteiristas acabam passando, e essa pode ser uma forma de Wilder examinar sua própria carreira para o expectador.

O maior triunfo da obra é claramente a interpretação sublime de Gloria Swanson e a presença imponente de sua personagem, Norma Desmond. Obcecada por sua beleza, está sempre assistindo seus filmes e transformando-se cada vez mais em uma versão mais extravagante e caricata do que já foi na frente da câmera. Ela representa todo o espetáculo de Hollywood e não sabe quando está indo longe demais. Não perdoamos suas ações, mas também não é tão fácil condená-la quando consideramos sua situação de vítima. O humor negro e os diálogos afiados do roteiro podem estar na superfície, mas essa é uma obra carregada de sérias críticas ao culto do estrelato, as demandas impossíveis por um “padrão de beleza” e a clara objetificação das mulheres, o que abre até um espaço para uma leitura sobre nossa indiferença com membros da terceira idade — e tem muito mais coisas que eu gostaria de abordar, mas não quero deixar o texto mais longo que o necessário. Essa parte do filme incomodou bastante Louis B Mayer, famoso produtor e um dos fundadores da MGM. Ele odiou como Wilder apresenta o meio artístico de forma maliciosa e corruptiva. É uma abordagem que pode ser considerada hiperbólica por alguns, mas os temas não deixam de ser reais e a crítica válida, considerando que não parece ter mudado muita coisa até hoje.

Desde o início, com um plano que captura a placa de Sunset Boulevard (também o título original do filme), a rua icônica que representa tanto para a contracultura e a história do cinema, somos jogados dentro do mundo de Norma, feito de sucesso e fortuna — ou, pelo menos, o mundo que ela já conheceu. Mas logo na sequência, ouvimos as sirenes e ficamos com o infeliz destino de Joe. Em segundos somos apresentados aos contrastes e a sensação de iminência que persistem durante o filme, que podem ser um olhar nos bastidores que ninguém quer ver, mas não consegue desviar o olhar, ainda mais tendo Norma Desmond no centro das atenções: “Tudo bem, Senhor DeMille, estou pronta para o meu close up”.

Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard) – EUA, 1950
Direção: Billy Wilder
Roteiro: Billy Wilder, Charles Brackett, D.M. Marshman Jr.
Elenco: William Holden, Gloria Swanson, Erich Von Strohein, Nancy Olson, Fred Clark, Lloyd Gough, Jack Webb, Cecil B. DeMille, Hedda Hopper, Buster Keaton, Anna Q. Nilsson, H.B. Warner
Duração: 110 min.

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