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Crítica | Cria Corvos (Cría Cuervos)

por Guilherme Almeida
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Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!

Casimiro de Abreu

Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora e não viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam. Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores.

Raul Pompeia

Infância como período largo, interminável, triste, onde o medo domina tudo, medo do desconhecido; nada do paraíso infantil que volta e meia cantam os poetas, nem da inocência, nem da suposta bondade das crianças. Fase de formação e deformação da personalidade, cheia de conflitos, traumas, transtornos, frustrações, dores, descobertas inquietantes, desejos inconfessáveis. Momento muito bem descrito por Sigmund Freud, pensador que não teve medo de refutar as edulcorações frequentes que cercavam o alvorar da vida, e de mostrar que nos pequenos corpos já vicejam pulsões amorais, destrutivas e egoístas.

Por registrar realisticamente todos esses aspectos interditos da infância, Cría Cuervos (1976) se configura como um grande filme, capaz de operar um profundo diagnóstico sobre as agruras da vida humana, claramente influenciado pelas descobertas perturbadoras (violentas feridas narcísicas) da psicanálise. A narradora Ana (Geraldine Chaplin), já adulta, relembra seus anos de pequenez, sem dourar a pílula para os elementos mais impactantes, traçando um relato cuja tonalidade flerta às vezes com o suspense e o terror, tamanho é o grau de agressividade dos pensamentos macabros da criança.

Brilhantemente interpretada por Ana Torrent, a menina sustenta uma postura que ao mesmo tempo encanta e ameaça. Seus olhinhos se fecham, dando vazão à imaginação, que recupera sua mãe falecida, mas podem logo depois se abrir, atiçados pela ira, sedentos pela morte de todos aqueles que a incomodem. Cría Cuervos, desse modo, é um filme sobre amor e ódio, vida e morte, pulsões positivas e negativas que vão desconcertadamente bailando no decorrer da projeção, registrando com fidelidade o funcionamento da mentalidade infantil, ainda pouco encabrestado pelas convenções morais socialmente difundidas.

Ocorre que analisar a psicologia de Ana como se ela fosse abstraída do contexto social é simplesmente ignorar um dos aspectos mais relevantes da obra. Mais uma vez, Carlos Saura tematiza as dificuldades da vida sob o regime franquista, assim como fizera em Ana e os Lobos (1973) e Mamãe faz Cem Anos (1979). Trata-se de uma trilogia sobre as relações familiares estranguladas pela ditadura e seus braços armados, seja o poder bélico de coação “na marra”, seja o poder simbólico da moralidade católica, hipócrita porque esconde por sob os panos quentes e com conivência as mais variadas contravenções.

Do mesmo modo que em filmes como O Espírito da Colmeia (1973) e O Labirinto do Fauno (2006), vemos aqui o autoritarismo do governo espanhol filtrado pela perspectiva infantil. A Ana de Cría Cuervos é dominada por pensamentos violentos que literalmente são brincadeira de criança perto da violência sistematizada como organização social. Se a menina desejava matar o pai, é porque este, ligado ao exército e aos fardados capatazes de Francisco Franco, anulou completamente a liberdade de sua mãe, que adoeceu de desgosto; se depois de se tornar órfã ela estende o ímpeto assassino para a tia (Mónica Randall), é porque a mulher guia as coisas da casa com uma mão de ferro tipicamente militarista.

Enquanto o mundo parece estar fechado para qualquer possibilidade de emancipação, a protagonista e suas irmãs Maite (Mayte Sanchez) e Irene (Conchita Pérez) tentam arranjar durante as férias escolares diversões que arejem a atmosfera social irrespirável, ora vestindo-se como mulheres adultas, ora encenando de modo jocoso as pretéritas brigas entre seus pais, ora ainda cantando e dançando ao som de “Por que te vas”, música-chiclete que ressoa ad infinitum na mente do público.

Pelo elenco, pode-se notar que Cría Cuervos é um filme eminentemente feminino. A condição da mulher é problematizada em todas as suas fases, desde a infância até a velhice mais avançada. As crianças começam a manifestar as características de feminilidade, maquiando-se como se fossem mais velhas. Por sua vez, a mãe quando viva era sistematicamente traída pelo marido, sendo o adultério na teoria rechaçado pelo código católico, mas, na prática, muito recorrente, sobretudo quando se leva em conta a quase onipotência da elite militar. A avó das meninas, por fim, encontra-se paralisada física e mentalmente, presa às antigas harmonias do rádio e às fotografias amareladas pelo tempo.

É tétrica a situação feminina, porém Ana esteve longe de se dobrar. É patente seu desrespeito à autoridade, fato perceptível quando ela se recusa a beijar a testa do pai no enterro, bem como quando diz à tia, em tom de desafio, que deseja que ela morra. Sua arma: um veneno químico que não sabemos se funciona. Sua vontade: aniquilar os usurpadores do poder e reviver o abraço cálido da mãe morta. Nesse sentido, merece palmas a engenhosa montagem de Pablo del Amo, responsável por uma mistura de temporalidades baseada em sutis flashbacks e flashforwards que conotam a natureza psicológica, não linear da cronologia de Cría Cuervos. Tal manipulação de momentos embaralha a percepção do espectador, aumentando o caráter fantasmagórico da película e ressaltando que o filtro infantil desorganiza a normalidade realista dos acontecimentos.

A ligação umbilical entre mãe e filha é tornada ainda mais clara quando notamos que tanto a genitora quanto a Ana adulta são interpretadas por Geraldine Chaplin. Fica a pergunta se a menina, crescida em outra geração, terá destino tão trágico quanto o de sua predecessora, vítima de um estado machista que transfigura a mulher em apêndice do marido. Se nos fiarmos no gênio subversivo da criança, parece que não. Sua imaginação como que dissolve os grilhões sociais e abre as porteiras de um mundo encantado que, entretanto, é tudo menos inocente. Os zooms marcam momentos de atenção intensa, nos quais Ana projeta suas obsessões ou desejos perturbadores. Alguns enfoques não dirigem a narrativa, embora apresentem com força inacreditável o registro realista de uma mente infantil inquieta, fértil e curiosa.

O título faz referência à máxima espanhola “cría cuervos y te sacarán los ojos”. Carlos Saura cria um drama em que as leis morais são afrouxadas, e nele o corvo que ataca é o mesmo que é acossado, a boca que beija também escarra, a mão que acaricia, envenena.

Cria Corvos (Cría Cuervos)- Espanha, 1976.
Direção: Carlos Saura
Roteiro: Carlos Saura
Elenco: Geraldine Chaplin, Ana Torrent, Mónica Randall, Florinda Chico, Héctor Alterio, Mirta Miller, Conchita Pérez, Mayte Sanchez
Duração: 105 min.

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