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Crítica | Curtindo a Vida Adoidado

por Iann Jeliel
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Curtindo a Vida Adoidado

Atletas, metaleiros, nerds, patricinhas, valentões, beberrões… Todos o adoram… Todos o acham o cara.

  • Contém SPOILERS!

A filmografia de John Hughes sempre esteve relacionada de alguma forma ao sonho adolescente apresentado por diferentes prismas. Em Gatinhas e Gatões, os personagens sonhavam em mudar o status de um estereótipo para outro, em O Clube dos Cinco, esses estereótipos sonhavam em conseguir se unir em harmonia, e em Curtindo a Vida Adoidado, esses estereótipos enfim se fundem, em uma pessoa: Ferris Bueller (Matthew Broderick, espetacular!), o expoente desse sonho em sua representação máxima, que busca a liberdade do discurso adulto que aprisiona os jovens em um sistema conservador educacional no intuito de não os tornar uma “geração perdida”. O filme, portanto, em sua comédia, pretende desmistificar a “vagabundagem” por meio da aproximação desse personagem, que não só está representando tudo aquilo que um jovem sempre quis ser em termos de personalidade mesclada de estereótipos, como é uma idealização daquele que consegue escapar do senso de responsabilidade imposto socialmente na adolescência que naturalmente impede de vivenciá-la como deveria.

Só com rebeldia? Não exatamente. Hughes sempre acreditou na importância da “curtição” no processo de amadurecimento jovial e moldagem de sua personalidade para o resto da vida, mas ele irá subverter na aventura a conceituação distorcida do que os adultos acreditam ser o ideal para os jovens de curtição, justamente para provar o seu ponto de que não existe tal “geração perdida”. Seja nos elementos mais sutis, o fato de em nenhum momento álcool ou drogas estarem envolvidos, até os mais explícitos como na fantástica cena do desfile ao som de Twist and Shout, dos Beatles, que transforma aquele evento protocolar de adultos em um carnaval enérgico que parecia precisar de um espírito jovem ideal para cumprir sua primordial função como festividade, Hughes busca reforçar a jovialidade de curtição como uma dádiva e não como algo condenatório porque essencialmente é ela que traz a vontade do conhecimento e também do senso de responsabilidade.

A passagem do trio pelo museu representa perfeitamente esse primeiro ponto, além de ser uma baita ironia, afinal, que tipo de jovem mataria a aula para ir a um museu? Enquanto o segundo está muito relacionado ao romance de Ferris com Sloane (Mia Sara). Em um determinado momento de Curtindo a Vida Adoidado, Ferris pergunta a ela “Por que não nos casamos aqui e agora?”, Sloane, obviamente, recua, porque existe nos princípios matrimoniais a ideia de casamento como compromisso, responsabilidade, o contrário do que aparentemente eles queriam no momento. Mas a fuga da responsabilidade não impede o desejo de querer assumir o compromisso, especialmente nesse momento final de colegial, quando os destinos daquelas relações podem tomar caminhos diferentes. O medo de Sloane com a fala de Ferris está na verdade no princípio adulto de compromisso, em que o casamento significaria o fim da curtição, que essencialmente os uniu e que a fez, ao fim daquele dia mágico, desejar para o futuro não tão distante o próximo passo: “Este é o homem com quem quero me casar”.

Hughes vai mais a fundo nessa ideia quando entra na dramática de Cameron (Alan Ruck), o amigo de Ferris Bueller, que representa o oposto do protagonista, o jovem passivo a todas as conjurações adultas impostas a ele. Cameron tem um relacionamento complicado com o pai, construído à base do medo do que pode ser feito a ele caso seja pego se divertindo ao invés de fazendo outras obrigações relacionadas ao colégio. Não à toa o personagem se vê assombrado com a ideia de Ferris de pegar emprestada a Ferrari de seu pai para passear por Chicago, principalmente considerando que ele a deixa sempre guardada na garagem, mal a usando, portanto, sabendo a quilometragem que seria alterada no momento que eles pegassem o carro. Ora, a escolha da Ferrari não só traz uma tensão interessantíssima para a aventura como não poderia ser um exemplo mais significativamente extremo à problemática do aprisionamento do gozo da curtição.

Afinal, por que ter uma Ferrari se não puder curti-la? E não coincidentemente, puxo o fato do pai de Cameron ser separado da mãe para mudar a pergunta: por que ele se casou se a curtição que possivelmente o fez casar (dentro de um espectro universal de que todo mundo foi jovem) ficaria aprisionada pelas supostas “obrigações” adultas? Parece viagem pensar nisso uma vez que o pai do Cameron nem sequer aparece no filme, mas existe sim uma intenção de Hughes de trazê-lo como entidade justamente para propor reflexões mais implícitas de seu quadro irônico da mentalidade adulta. Ele não aparece em termos práticos porque o que importa é a jornada dramática de Cameron em se desfazer dessas amarras que ele criou – e não havia jeito mais provocativo de fechar esse arco do que esbagaçar a Ferrari – com a ajuda de Ferris Bueller, que como dito é uma espécie de símbolo da resistência. E há duas situações que deixam isso muito claro e que também são ótimas piadas.

A primeira é a campanha “Save Ferris!” que todos no colégio fazem para que ele vença sua doença inventada para matar aula, em contraponto a Cameron que realmente estava doente antes do dia começar. Ora, tal doença poderíamos colocar então como essa influência negativa dos adultos que afetava Cameron, mas não afetava Ferris de verdade. E se observar os diálogos dos jovens para essa campanha, é nítido que existe um duplo sentido diante do desenrolar da trama, em que basicamente está todo mundo torcendo para que ele consiga não ser pego matando aula. A segunda meio que confirma a primeira por meio de uma reviravolta muito bem implementada. A irmã de Ferris (Jennifer Grey) parece ser a única a não colaborar com tal campanha, o que em condições normais leva a crer que ela será responsável por entregar o irmão, por algum clichê relacionado a rixas que irmãos de diferentes idades costumam ter. Só que, diferente do que aponta a convenção, sua inveja é convertida para uma admiração de mesmo tipo que faz todos os estereótipos adorarem Ferris justamente por esse fato de ele sempre conseguir escapar. E vejam só se não é uma ótima piada ela revelar isso justamente estando na cadeia, sendo “pega”, vale a curiosidade de que o figurante com quem ela conversa é nada mais nada menos que interpretado por Charlie Sheen, de Two and a Half Men, bem novinho.

E claro, não posso deixar de comentar do papel fundamental do vilão, o diretor do colégio (Jeffrey Jones), em todo esse raciocínio de Curtindo a Vida Adoidado. Na verdade, ele é a parte mais explícita, a representação máxima de autoridade de um sistema intensamente criticado por Hughes. As montagens iniciais tentam emular o quão desestimulantes são as aulas naquelas metodologias padronizadas. O cineasta até filma o colégio como se fosse uma prisão para depois abrir uma perseguição ilógica e inescrupulosa do diretor a Ferris, que é uma espécie de bandido e fugitivo daquele ambiente por matar aula, e o adulto precisa comprovar que ele está cometendo o crime, ou melhor, provar o quanto ele é vagabundo. Se isso não faz o menor sentido em âmbito realista, traz uma premissa deliciosa para a galhofa da aventura, que acima de tudo confirmará as teses anteriores de que quem cria a “geração perdida” é a outra geração, também “perdida”, mas porque seguiu o sistema.

Aquele clímax apoteótico de Ferris escapando por conta da irmã ter o salvado é basicamente um grito de comemoração à vitória do sonho da juventude preservado, enquanto a derrota do diretor tendo que entrar ainda num ônibus colegial no final todo mordido e sujo é o revanchismo perfeito a um sistema que só irá mudar se começar a olhar para dentro de si. Porque independe da época, o discurso da geração perdida é revivido a cada nova geração frustrada por não ter aproveitado o sonho de viver a sua porque a anterior a impediu. Logo, ela impede que a próxima aproveite a sua maneira. Nesse sentido, Curtindo a Vida Adoidado ultrapassa o espectro oitentista, que honestamente nem está tão presente em sua atmosfera de tão universal que o status desta obra atinge quando propõe a idealização da juventude em Ferris Bueller. Mais do que um clássico oitentista icônico pela rebeldia travestida nas quebras de quarta parede carismáticas, a obra-prima de John Hughes é um grito de liberdade ao pior estereótipo de todos, aquele que os adultos colocam nos jovens, que só querem ser jovens.

Curtindo a Vida Adoidado (Ferris Bueller’s Day Off | EUA, 1986)
Direção:
 John Hughes
Roteiro: John Hughes
Elenco: Matthew Broderick, Alan Ruck, Mia Sara, Jeffrey Jones, Jennifer Grey, Cindy Pickett, Lyman Ward, Edie McClurg Edie McClurg, Charlie Sheen
Duração: 103 minutos

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